quinta-feira, 9 de junho de 2016

VARIANDANDO
            Acostumado na preguiça coçadeira, se alternando entre duas posições chaves, da porta do bar para a da barbearia da esquina, Romerinho da Donca se atazana, com competência, no rastreamento sistemático, ou no imaginário, das vidas alheias. Os dois cantos estratégicos e perfeitos da praça principal, subindo, a matriz, descendo, o Colégio das Freiras, o Grupo Escolar e a Escola Normal, na mesma direção da Prefeitura e, em frente, o Clube Comercial, não deixam escapar nada aos de boa vontade. Visita ao banco abre espaços às ilações sobre crédito, negócios arriscados ou até insinuações de flertes ou casos a caminho. Reincidência de visita, imagine o estrago. Terceira, só portador. Para completar, os que rodeiam a igreja sem entrar, ou seguem para o sanatório ou, a maioria, beco das damas. Romerinho é pontual assim que há vida em Itaponga. As escolas começam as sete e a meninada chilreia enfeitando as ruas. Aos pré-concebidos, no entanto, pode parecer pura maledicência inútil e até deformação de caráter, a atividade cotidiana de Romerinho. Contudo, os tecidos sociais, se deixados ao desabrigo das interpretações dos competentes, com conhecimentos sistemáticos dos intervenientes, todos, humanísticos, psicológicos, éticos e mesmo morais, não trariam os benefícios necessários e fundamentais dos quais a comunidade carece ardentemente. A atividade envolve arte e ciência, em síntese, criatividade. Exemplifica o fato o romance da viúva recente, que se tivesse meramente sido exposto, sem a verve nata característica da alma humana, aonde Romerinho se espraia com desenvoltura, sem as vacilações e angústias de solidão durante o luto, as dúvidas e ansiedades das decisões, morreriam no insondável e não seriam mais do que difamações insossas e desconexas, não sofressem as lapidações claras contextualizadas por ele. O seu desprendimento e criatividade traduziu, no caso, alto espírito de síntese em benefício da coletividade e da própria viúva. Nem sempre se reconhece o seu incorrigível abnegado afeto. Sua dedicação não se acomoda com o por do sol. No horário da novela, em que se assiste futricas fantasiosas e artifícios fictícios que nada tem a ver com a cidade, ele adere, por devoção, ao triunvirato expressivo de Itaponga, prefeito, juiz de direito e o cônego, a pretexto de um pôquer que ocorre na sacristia, no fórum ou na prefeitura O jogo encetado tem características básicas e únicas: primeiro, é mero objeto intermediário para a microscópica atenção dos ativistas sobre o contexto subliminar coletivo. Neste sentido as regras da disputa operam em tempo e espaço bipolar. As apostas são valores monetários medíocres e circunstanciais, pois o que pesa entre o players são as simultâneas colocações de vicissitude individual ou coletiva, com possibilidades efetivas de se tornarem acontecimentos e aberturas para os imaginários férteis, e lógico, flexíveis às circunstâncias. Segundo, salvo exceções, têm sempre algum vetor Freudiano. E, derradeiro, vai ao âmago complexo das urdiduras, preenchendo nuances e ausências com retoques, aditivos perfeitos e, principalmente, saboridos. Nada é simplório, altíssimo coturno.
O Juiz Nonato distribui as cartas. Cônego Ácolle pediu duas, esperou as dos demais, abrindo com dois e retrucando que a mãe de Giroca estivera na igreja. Ratificou pio não trazer fruto de confissão, mas a paroquiana pedira conselhos sobre o filho que não parara de beber.  Giroca, caso antigo no contexto, não despertou repiques e o Padre recolheu, acabrunhado, poucas fichas e introjetou a proposta inicial. O jogo rolou desenxabido. Na maioria dos lances casos insípidos para aquele nível de competência. O sono começava a bocejar em todos. O calor só voltou com o prefeito Peta abrindo a mão com três e cacifando que Tenorinho fora à Prefeitura saber valor venal dos seus imóveis. Nonato, ajuizando, agitou mais três e saltitou, mordaz, que fora procurado pelo Dr. Gardilho, para tratar de desquite amigável para clientes, sob sigilo, não abrira os nomes, talvez... O Cônego arredondou o dobro e, olhos ariscos, frisou que Rotélia, mulher de Tenorinho, rondara a sacristia varias vezes durante a tarde, não pediu nada, mas... Romerinho fechou quinze, reforçou que Tenorinho ultrapassou a igreja, e acentuou, pior, sem entrar, mas não viu se seguiu para o Sanatório, apoio psicanalítico, ou para a casa das moças, campeando proveitos ou provérbios. Os prováveis se multiplicaram à madrugada solta de boca cheia. Só a lua, no final, assistiu aos quatro, exultantes, nas despedidas, acordando convictos e precavidos:
-Bom Romerinho, e todos nós, vamos tomar cuidado, não deixar o Tenorinho e a Rotélia saberem que eles estão prestes a se separarem. Eles podem ficar magoados com o povo fofoqueiro de Itaponga.    
Ceflorence           email  cflorence.amabrasil@uol.com.br

4 comentários:

  1. Excelente essa crônica Sr Florence... Quem já viveu em cidades do interior brasileiro certamente conhece "figuras" do mesmo naipe dos quatro jogadores de pôquer. Parabéns pelo belo texto e pela criatividade de sempre.

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    1. Muito obrigado pelo acompanhamento, carinho e incentivo. É o que motiva a continuar.

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  2. Bom demais,como sempre, Carlos!Como é que você consegue tantos detalhes? E o livro, sai ou não sai?
    Abraço!

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    1. Tânia, muito grato e é uma alegria sempre que recebo os seus retornos gratificantes. Aguardo os demais para continuar tento motivo para publicar. Abraço.

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