VARIANDANDO
Acostumado na preguiça coçadeira, se
alternando entre duas posições chaves, da porta do bar para a da barbearia da
esquina, Romerinho da Donca se atazana, com competência, no rastreamento
sistemático, ou no imaginário, das vidas alheias. Os dois cantos estratégicos e
perfeitos da praça principal, subindo, a matriz, descendo, o Colégio das Freiras,
o Grupo Escolar e a Escola Normal, na mesma direção da Prefeitura e, em frente,
o Clube Comercial, não deixam escapar nada aos de boa vontade. Visita ao banco abre
espaços às ilações sobre crédito, negócios arriscados ou até insinuações de
flertes ou casos a caminho. Reincidência de visita, imagine o estrago.
Terceira, só portador. Para completar, os que rodeiam a igreja sem entrar, ou
seguem para o sanatório ou, a maioria, beco das damas. Romerinho é pontual
assim que há vida em Itaponga. As escolas começam as sete e a meninada chilreia
enfeitando as ruas. Aos pré-concebidos, no entanto, pode parecer pura
maledicência inútil e até deformação de caráter, a atividade cotidiana de
Romerinho. Contudo, os tecidos sociais, se deixados ao desabrigo das
interpretações dos competentes, com conhecimentos sistemáticos dos
intervenientes, todos, humanísticos, psicológicos, éticos e mesmo morais, não
trariam os benefícios necessários e fundamentais dos quais a comunidade carece
ardentemente. A atividade envolve arte e ciência, em síntese, criatividade.
Exemplifica o fato o romance da viúva recente, que se tivesse meramente sido
exposto, sem a verve nata característica da alma humana, aonde Romerinho se
espraia com desenvoltura, sem as vacilações e angústias de solidão durante o
luto, as dúvidas e ansiedades das decisões, morreriam no insondável e não seriam
mais do que difamações insossas e desconexas, não sofressem as lapidações claras
contextualizadas por ele. O seu desprendimento e criatividade traduziu, no
caso, alto espírito de síntese em benefício da coletividade e da própria viúva.
Nem sempre se reconhece o seu incorrigível abnegado afeto. Sua dedicação não se
acomoda com o por do sol. No horário da novela, em que se assiste futricas
fantasiosas e artifícios fictícios que nada tem a ver com a cidade, ele adere,
por devoção, ao triunvirato expressivo de Itaponga, prefeito, juiz de direito e
o cônego, a pretexto de um pôquer que ocorre na sacristia, no fórum ou na
prefeitura O jogo encetado tem características básicas e únicas: primeiro, é
mero objeto intermediário para a microscópica atenção dos ativistas sobre o
contexto subliminar coletivo. Neste sentido as regras da disputa operam em
tempo e espaço bipolar. As apostas são valores monetários medíocres e
circunstanciais, pois o que pesa entre o players são as simultâneas colocações
de vicissitude individual ou coletiva, com possibilidades efetivas de se tornarem
acontecimentos e aberturas para os imaginários férteis, e lógico, flexíveis às
circunstâncias. Segundo, salvo exceções, têm sempre algum vetor Freudiano. E,
derradeiro, vai ao âmago complexo das urdiduras, preenchendo nuances e
ausências com retoques, aditivos perfeitos e, principalmente, saboridos. Nada é
simplório, altíssimo coturno.
O Juiz
Nonato distribui as cartas. Cônego Ácolle pediu duas, esperou as dos demais, abrindo
com dois e retrucando que a mãe de Giroca estivera na igreja. Ratificou pio não
trazer fruto de confissão, mas a paroquiana pedira conselhos sobre o filho que
não parara de beber. Giroca, caso antigo
no contexto, não despertou repiques e o Padre recolheu, acabrunhado, poucas
fichas e introjetou a proposta inicial. O jogo rolou desenxabido. Na maioria
dos lances casos insípidos para aquele nível de competência. O sono começava a
bocejar em todos. O calor só voltou com o prefeito Peta abrindo a mão com três
e cacifando que Tenorinho fora à Prefeitura saber valor venal dos seus imóveis.
Nonato, ajuizando, agitou mais três e saltitou, mordaz, que fora procurado pelo
Dr. Gardilho, para tratar de desquite amigável para clientes, sob sigilo, não abrira
os nomes, talvez... O Cônego arredondou o dobro e, olhos ariscos, frisou que
Rotélia, mulher de Tenorinho, rondara a sacristia varias vezes durante a tarde,
não pediu nada, mas... Romerinho fechou quinze, reforçou que Tenorinho ultrapassou
a igreja, e acentuou, pior, sem entrar, mas não viu se seguiu para o Sanatório,
apoio psicanalítico, ou para a casa das moças, campeando proveitos ou
provérbios. Os prováveis se multiplicaram à madrugada solta de boca cheia. Só a
lua, no final, assistiu aos quatro, exultantes, nas despedidas, acordando
convictos e precavidos:
-Bom
Romerinho, e todos nós, vamos tomar cuidado, não deixar o Tenorinho e a Rotélia
saberem que eles estão prestes a se separarem. Eles podem ficar magoados com o
povo fofoqueiro de Itaponga.
Ceflorence email cflorence.amabrasil@uol.com.br
Excelente essa crônica Sr Florence... Quem já viveu em cidades do interior brasileiro certamente conhece "figuras" do mesmo naipe dos quatro jogadores de pôquer. Parabéns pelo belo texto e pela criatividade de sempre.
ResponderExcluirMuito obrigado pelo acompanhamento, carinho e incentivo. É o que motiva a continuar.
ExcluirBom demais,como sempre, Carlos!Como é que você consegue tantos detalhes? E o livro, sai ou não sai?
ResponderExcluirAbraço!
Tânia, muito grato e é uma alegria sempre que recebo os seus retornos gratificantes. Aguardo os demais para continuar tento motivo para publicar. Abraço.
Excluir