segunda-feira, 29 de junho de 2020


SALVE O INFINITO E O PADRE NOSSO

Há sete desejos sumidos e cinco luas findas, mesma fé, sonho não provinha.
Criança chorava só, leito, mãe desprovia do peito, cão grunhia.
O sol espreguiçava em sustenido, melancolia dispersada, solta, afronta.
Derriçou o verbo, derramava chuva, turva, sonho despariu infinitos, sumiço.
Feitiço? Prantos, chusma de andorinhas, doze sorrisos, grito no escuro, solidão.
Prontidão, atentas, todas, manias, cartomantes, beatas, rameiras.
Umas santas, sensatas, outras profanas, vistosas, altaneiras.
Padre Bencó professava às primeiras, mas demais abençoava, crendoso, castiço.
Tanto sonho faltado, rua vazia, gente, sandice, sarjetas, sem prosa ou mossa.
Nossa. Fez-se inverno, veio frio, pediu trégua, passou régua. Estica, aguarda.
Não brota sonho, é a sina, povo duvida, rio abaixo, mundo acima.
Desavistou azul, indescortino, gente chora, pintassilgo em muda, descanta, nada.
Desarrumo, aventa praga, não desdiga do vento, sonho, nada.
Sonho? Sonho, que és de ti sonho?
Maré cansou do embalo, o barco saiu sem vela, vela ficou ao tempo.
Restou ao leu, intrigou, sonho, apogeu, cisma subiu ao céu?
Ronda do mar calou, Netuno atenta Iemanjá. Sonho afunda. Se dá mais? Jamais.
E por ser por demais desfeito, se dá dando ao infinito, desassossega, paira, para.
Paira, espera, arvora, clama o sonha, acanha, some sonho. Estranha hora.
No entanto um adeus, regaço, solidão, esperança, lira desfeita, sida.
Deserto, relento, sol, destino, sonho ido, mágoa, morte, não ser.
Caiu o verso, sumiu o senso, fantasia perdeu-se, era, quebrada, desdeu-se.
Seja feita sua desfeita aqui na terra como no além. Pois como sonho desfez-se.
Amarga, o tempo se faz solidão, apavora, desampara, morte. Esgarra. Vez?
Em vez, por ser, talvez, apetece, acontece, veja, astros revertem. Atrás.    
Renasceu pelo amanhã e se verteu incenso, mirra, cantar e galo.
Afogaram cismas, penhor, solidão definha. Porém provérbios, amém, vinham.
Renasce, criança fantasia, mãe aleita, estreita, aquece, sonhama, ama.
É. Só, sonho, sol, maré desponta, fé viceja, veja, Padre Bencó aflora. Ora.
Beatas, santas, rameiras, abundam ruas, sarjetas, festejam, sem réguas ou tréguas.
Festejam vícios e canções, sonhos soltos ao dará, Deus, ocasiões. Transforma, versa.
Morre a cisma, cresce a rima, verbo, sonho abunda, alegria graça. Euforia.
Canta, rua acima, mundo abaixo, alucina, traço, proveito, provérbio.
Enfim fim sós. Só somos só sonhos só!        
 
 Ceflorence   29/06/20    E-mail    cflorence.amabrasil@uol.com.br

quinta-feira, 4 de junho de 2020

FANGAS E OLÓCIOS EM ESPLENDOR DO MACAÇAU.

            A última janela, final do corredor, entre o oratório, quarto do silêncio e fantasias, a biblioteca, sempre deixava entrar à tardinha um resto de luz melindrosa intendendo se insinuar tais libélulas, com certo afeto místico a ser e se fazia deslizar ao além ou invadir o imprevisto. Assim se anunciava o dia feito com o poente debruçando sobre a solidão e o sino da capela de Esplendor do Macaçau chamando para a Ave Maria. Rondeava, tanto por ali também, um aroma delicado de poesia colorida nos chilreados dos pintassilgos entremeados com o sorriso espontâneo de Vó Somezinha.
Cismando, atento, se escutava baixinha a sonoridade dolente de arco íris das asas das libélulas brincando de melancolia. Era mesmo nesta sutileza que Tio Guanduxo apontava-me os sumiços das libélulas ao em se indo infinitas céus afora, misturadas em sustenidos, antes de voltar a solfejar grave, com os dedos magros sobre a partitura de Fígaro, para apresentar-se, um incerto dia, com Maria Callas, quando o Cine Teatro Avenida estaria lotado.
Escapava, depois de ouvi-lo, aos meus aforas insinuados, convencido dos destinos das libélulas, mas intencionado mais na obrigação de puxar pelo rabo Alai, gato russo, ainda com saudades de mamar e ensiná-lo, carinhosamente, a tomar ciência das tarefas da ratazana mais velha, do relógio de carrilhão da sala grande e da aranha felpuda tecendo delicadezas pelos tetos inacabados do solar. Do fundo do pomar vinha um silêncio convidando à preguiça. Os passarinhos ali nas árvores não sabiam que habitavam o prometido, supunha.   
As quebradiças paredes sujas, cada dia uns casquilhos maiores, nos olhavam ouriçadas, pois careciam resguardar o passado plasmando nos desenhos lapidados das goteiras refletindo abstrações e horóscopos. Nestes astrais, Vó Somezinha penetrava com a sua alma imantada de além, impregnada de ciência profunda e esgarçando fé do infinito. Dependendo da forma envesgada do seu olhar pelos cantos das fantasias e das crenças com que acordava, conseguia soletrar em braile, ela, os entrecortados nos tisnados do porvir, pois o passado e presente, ali grafados nos reboques, não mentiriam à evidência do advir a caminho.
Memoro se correto, estávamos na quaresma, pois só às carnes achegava miúdo, eu, escondido e àquela manta despencada longa do jirau, com o melhor perfume do mundo, o proibido, sabor de pecado original, ousadia, pendurada no fundo da dispensa, com certo ar de solidão e meditação confabulada. Para mim festiva e temperada pela dentada gulosa, vigiada pelos olhos ladinos à porta grande, carne sensual, pontas dos pés sobre o caixote bambo, pois se esticava bem ao alto a peça farta, afastada dos ratos, das manias, das crianças.
Nestes torpores, os pretéritos e as andorinhas ligeiras retornavam do infinito ao se pôr o sol, de onde traziam seus mimos para os esparramarem aos pés d’Avó Somezinha no terraço fazendo mandriar-se cochilenta, merecida, no terço em reza ao Vô Albargádio. Neste tempo, Tia Ancinha atravessava dia em busca de todos os cômodos, corredores, pausadamente, repetindo aos falecidos suas obrigações, os quartos de cada um e os cuidados para não assustarem as formigas carinhosas responsáveis por despertarem os sois nas madrugadas.
No sobrado, a imortalidade às vezes se distraia e escapava alguém para se deixar morrer por algum pouco tempo, mas assim que se descuidasse voltava o falecido, fagueiro, ao armário de Somezinha, aos passeios da Tia Ancinha, para o boa-noite do galo índio, coruja do forro, acariciar o cachorro, beber água na bilha, amém das seis horas, ou o sim-senhor de qualquer estranheza ou novidade que atravessasse o imaginário e a fantasia.
Foi neste mesmo outono, ano de chuvas pesadas, roças faceiras, nhambu acanhando moroso das águas no entremeio do ensejo preguiçoso e do pé de serra que se deram os acontecidos e ditos que reponto. O tempo se marcava bem, o casal de fanga e olócio, de que falei, chegou ao sobrado de forma espontânea, metódica, educada. Vieram com intenções de eterno, alongados do pretérito até a suposição do desvelamento, ao que deduzi pelo perfume marcante.
Passaram a se disfarçar de inexistentes e corteses no desvão desocupado, camuflado, vizinho de uma goteira na claraboia enxergando a lua, entre o sótão do forro mais alto, pegado exatamente ao pedaço de imaginário incolor que circulava pelos corredores e um tom indeciso usado para prevenir mal olhado que Somezinha guardava na terceira prateleira do armário das maravilhas mágicas e vidências.
O primeiro olócio a que atentei tímido e recatado, como nas demais vezes, se fazia em azul reclinado sobre a autoconfiança introspectiva, solfejando um sombreado viscoso, elegante, disfarçado de perplexo, nada invasivo. Punha-se ele entre os copos, taças, talheres da cristaleira no canto do fundo da sala de jantar, muito a vontade, tranquilo. Agitava-se sem preocupação entre as prateleiras com sua sonoridade de estilhaços acomodando-se às peças a se fazerem sorrir estagnadas em seus lugares, imóveis, caladas, sensuais, para recepcioná-lo. Davam a nítida sensação de que os cristais se gratificavam com os afagos delicados e cuidadosos ao tocá-los olócio.
A janela do meio espiava o infinito no hábito antigo de se deixar ouvindo o deslizar suave do silêncio de uma parreira começando a florir. Sistemáticas abelhas, borboletas, mosquitos, cirandando suas satisfações nos entornos apareceriam dolentes vagueando desejos, tanto que o sol aproveitou o balanço da poesia em curso e esparramou-se descontraído, preguiçoso, sobre a mesa posta. Notei estranho que o sol antes de se debruçar sobre a última cadeira de espaldar nobre sorriu-me como a pedir permissão pela ousadia e intrusão. Ao ensejo do olócio presente, estes detalhes foram se imiscuindo comigo em um só existir e não conseguia mais, eufórico, diferenciar onde começariam os inebriados derredores e por onde afloravam minhas ideias íntimas excitadas. Pelos segredos intangíveis fui me metamorfoseando em um nós inseparável. Senti-me entrar pela goela melíflua indefinida do abstrato com sabor de imponderável e transmudar o eu em enorme interjeição de nós.
A partir de então, envolvemo-nos suavemente em uma algaravia cativante, não distinguíamos se interna ou externa, nos autodevorando de maneira macia e percebemos um último pensamento meu, isolado, já distante e disfarçado, prestes a alcançar as asas preguiçosas de uma mariposa para esconder e livrar-se de conflitos. Entalamos unidos entre uma suposição arregalada e abduzimos com a cadeira de braços que fora do Avô Albargádio ao sentir o olócio nos encantar. Concluímos, pela forma alegre com que o teto nos acariciou que não estaria o advento do olócio ligado ao horóscopo do dia findo com regência de Capricórnio atraído pelo Zodíaco em Áries, que se separara da constelação de Netuno para enaltecer a fertilidade de Peixe advindo, conforme Somezinha confirmara à prima Mecália engravidada do oitavo filho a nascer no final de ano.
Notamos, neste momento, que olócio estendeu delicado e afetuoso os membros desuniformes de sua sombra elegante, viscosa e juvenil, balançando calma e fagueira, para segurar carinhoso o vestígio da sua fanga adentrando a cristaleira. Invadiu radiante ela, sombra sílfide, misteriosa nuance, secreta, colar invisível tilintando mouco, melodia silente, fragrância de pecado, sabor de desejo. Fomo-nos amalgamando àquelas fantasias e não separávamos mais o antes do azul, os móveis da imaginação, as teias das aranhas trinavam candentes ao sorver os pássaros, enquanto o pomar beijava sofregamente o forro de taquara para se fundirem e, assim, coesos pusemo-nos a introverter em um só êxtase às paredes sensuais.   
Nosso alongamento sala deu-se encolher ao fundo, como braço suave se curvando delicado, tal se portam os sonhos para não fugirem do inconsciente, e nos permitimos desvanecer acompanhando as sombras se aconchegando. No mesmo movimento, nossa integração cristaleira, respeitosa, debruçou-se sobre o aparador para facilitar a descida da fanga e do olócio sobre tábua furada que se envaidecia e se inteirou para os ruídos assombreados deslizarem mansos tais brisas que a tarde trazia. Na medida em que cruzavam nossos espaços as sombras delicadas, as formas dos moveis, objetos retornavam às suas individualidades, as paredes sorridentes reassumiam suas imponências eternas, não antes de se contorcerem para ajustarem os reboques, as poeiras, a preguiça sobre o eterno.
Fanga e olocio, com graça e melindre, irromperam nossa perplexidade, exalando indefinidos silêncios perfumados e dispuseram em nossas mãos curiosas uma única colher miúda de dúvida. Não tinha sabor, cheiro ou cor, mas nos sabia altamente suspeita para o uso sem orientações precisas de Somezinha. Ao deixarem a pequena amostra de dúvida, foram morosamente se despedindo do integrado, nós, e retornaram olócio e fanga pela cristaleira, que se ajoelhou delicada para galgá-los às hipóteses ou às alternativas que os indeterminariam. Olhei o redor e os objetos, sons, os silêncios, imaginações volviam impertinentemente ao estável insonso, imutável convencional, como fossem alegrias desajustadas, tristes. Abandonaram-me cruelmente incompetente com sabor de orfandade deprimida. As lúgubres cadeiras de braços, em suas imponências eternas, destroçando sobre as tábuas puídas plasmaram circunspectas, como se impunham existir, e eu, indefinido, choraminguei tal qual permitido, dedilhando a dúvida na palma da mão sem saber ao que destinar.
Procurei o quarto de Somezinha, ansiedade abraçada escada acima, degrau, degrau, ansiedade. Bati baixinho na porta larga de duas folhas com a mão vazia e segurando a isca de dúvida na outra, cuidadosamente. Somezinha continuou um tempo mais no oratório conversando com o falecido Vovô Albargádio, como me disse ela, pois vinha ele prudente ao anoitecer para deixarem o silêncio os acarinhar, sossegados, antes de agasalhá-lo, pô-lo a dormir. Depois de beijar-me, doce, perguntou o por quê do olhar de socorro. Mostrei-lhe a pitada de dúvida no centro da palma da mão e contei-lhe os detalhes da visita da fanga e olócio, as movimentações das cristaleiras, sons, pensamentos, paredes nos incorporando em uma só deliciosa alucinação inebriante. Chorei novamente por ter sido abandonado à minha incompetência naquela sala de realidades indiferentes, tristes, concretas. Vovó apertou delicada minha mão, fechando-a sem mais olhar.   
- Enásio, menino, hoje se deixou vir em arrebatamento à segunda essência que governa o absoluto, os astros que regem do infinito à nossa insignificância. A primeira foi o desejo, tão logo concebido por seus pais, a segunda a dúvida, que vem com a maturidade, para o bem e para o mal. Veio a você nesta metamorfose entre você e incomensurável entorno, pois tudo ocorre como uma só consciência no seu existir, no pensar. No momento que colocou o todo em eu sentir, o seu sentir, pensar era o todo.
A dúvida chega a cada um de forma muito especial. Quem criou o cosmos pensou em detalhes. Tudo é envolto no êxtase existencial por estes dois fundamentos, desejo e dúvida. O resto são detalhes decorrentes. Se a dúvida antecedesse o desejo o próprio Criador poderia não ter idealizado o cosmos, a terra, a vida. Imagine se ele preferisse o nada ao ter dúvida no seu desejo.
Chegue pelos tempos infinitos a você mesmo, que ficaria desesperadamente em dúvida se preferiria nascer ou se eternizar no útero indefinidamente com sua mãe. Duvidaria se deveria mamar ou ouvir o sorriso dela. Os homens se fazem em desejos de se tornarem Deus, mas duvidam como. Sofrem entre a dúvida a escolher, amor ou ódio, guerra ou paz, afeto ou solidão. Tenho eu dias vários desejos infinitos que minhas rezas, bênçãos, vidências prosperem, se eternizem, mas tenho dúvidas e sofro até que se rebrotam. Pense na dúvida de Guanduxo se Maria Callas virá a Esplendor do Macaçau. E nas dúvidas de sua Tia Ancinha se as formigas não despertarem o sol ou os mortos resolverem migrar para outros aléns.
Só você poderá balancear suas dúvidas e seus desejos. É a vida, eu estou em dúvida de uma alegria triste profunda se lhe dou um beijo porque você se emancipou ou se acabrunho porque vai se alimentar da imensa angústia que é de decidir sempre entre as liberdades que as dúvidas lhe trarão para escolher sempre. Vá dormir. Vou ver se Albargádio está dormindo mesmo, pois à noite duvido às vezes se ele preferiu morrer sozinho em algum além.

Ceflorence     04/06/20         e-mail - cflorence.amabrasil@uol.com.br