segunda-feira, 25 de abril de 2016

GÊNESIS
O tempo foi criado em quatro deleites e após dois intervalos, o azul, primeiro, em seguida o sutil. Deleites: graça, absurdo, compaixão e paciência. Coube ao poeta, dois entreatos, a métrica, meia taça de vinho e o til. O azul, encabulado, sumiu. Por inacabado, houve interposição à métrica e parte foi repartida por simples regência. Para sanar, dividiu-se o absurdo entre cantigas; uma lenta, três prosaicas e duas amenas. Na dúvida, a compaixão se desfez em metonímia e ausência. Paciência, nada é perfeito, retrucou o poeta, apenas. Tomaram-no por imbecil, ficou sem o vinho, o intervalo e o til. Imbecil, repetiu o azul e, por deboche, sorriu.
Gênesis do poeta, do tempo, do absurdo e da compaixão do arrependimento, na falta de outras estrofes melhores, menores.
            O espaço, lançado entre aspas, elaborado na solidão, é fundamental à gênesis. O filósofo, alheio aos fatos, considera homem, deus, criação, lapsos dos inconscientes. Caso não houvesse aspas, neste contexto, o eterno retorno ao nada repetiria Fênix. Por isto, por tédio, as formas, as alternativas, os enfáticos, se deram cientes. Firmamento, tempo, espaço, relatividade, abstrato perdido e por ai o norte perdeu-se. Pensamento, consciência, fuga, trajeto, anseio, esperança, são atiçados ao léu. Ao poeta basta rima, ao filósofo falta sonho, o homem, na dúvida, antropofagia-se, aos demais, a sorte se deu. O espaço só é quando o homem o vê.  
            Gênesis do espaço, do firmamento, do filósofo, da criação e do trajeto, por descuido, talvez, por absurdo e horas perdidas, pedidas.
            O cavalo inventou o homem para ser domesticado, invejado e exaltado. O homem inventou o medo, o risco, o provérbio e o galope. Nas tardes de sol ou noites de solidão, o homem ordenou o galope para excitar a libido. Foram articuladas as tristezas para serem contrapostas às cores e aos pardais. Sextas feiras os sacramentos eram oferecidos aos jovens, aos banguelas e aos imorais. Vitupério e ambrosia seriam objetos de escárnio, não fossem palavras de sons elegantes, suaves, dissonantes. Poderiam ser oferecidas aos dissidentes, psicopatas e amantes.
            Gênesis: do cavalo, do vitupério, da elegância, da preguiça e, pela incompetência, ausência, de se encontrar cores mais atrativas, ativas.

            A luxúria e o lúdico foram ordenados profissões de fé, indispensáveis, nas cerimônias papais medievas antes das canonizações. Segundo Malaquias, ordenador da gênesis da terapia ocupacional, a forma correta de alterar a mediocridade do convencional e inverter o processo, é simples: bastaria enobrecer as diáfanas da luxúria e do lúdico.  O sul se nortearia, o parto faleceria, a morte renasceria e o infinito acabaria. Sustenta-se que a oferta do prazer não é privilégio dos deuses, dos eleitos e dos abonados. A cultura Impéria, dos Calamitas, alongava a puberdade dos escolhidos para se alimentarem de luxúria, ao limite, e se fartarem no lúdico, no excesso. Os Calamitas foram extintos em rituais macabros oferecidos aos deuses dos absurdos. Suas almas se encarnaram em pedaços de esperanças, fragmentos de compaixão, retalhos de independência e mínimas derrotas de fracasso. Como minorias, parciais, subsistem de ilusões e restos distorcidos de contraditórios sinais.              
            Gênesis da luxúria, do lúdico, das minorias e dos contrafeitos. Havia entre os párias sexuais os mais conformados, até o momento da exaltação aos direitos iguais. Ninguém mais aceitou a porventura como consolação, após as divulgações das utopias, metáforas pobres e frias.
            No último sermão da morte, argumento indiscutível, foi memorado que a vida é o curto espaço entre o susto inconsciente e o indesejável consciente. A cigarra brinca de crisálida sete anos, refestelada no pedaço de inocência que lhe cabe. Ali, após a solidão encapsulada, quando sonha viver e cantar, expele a alma em sete dias corridos para o além, afável.  O talvez, independente da cigarra, foi inventado para quando o assunto começa a faltar. Joga-se meia dúzia de desconexos, um perfil de azul em retrospecto, exibe-se a taça simbólica do amor, do sangue, do vinho. Divide-se o pão em partes iguais, menores, e sem precipitação, com delicados disfarces, propõe-se um ponto sutil, final, carinho.
            Gênesis do encerramento, do motivo, da incompetência. A cigarra, circunstancial, entrou em cena, após sete especulações, sete anos, sete tristezas, uma só cantata e a afinada fuga, sem mágoa.
Ceflorence    10/04/16        email    cflorence.amabrasil@uol.com.br 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

REFLUXOS
Pela pequena fresta da janela, uma réstia suave de luz invadiu o quarto em desordem, encostou-se ao ouvido de Marzilinha, avisou-a que Rútilo se fora. De imediato, o feixe claro beijou-a, afetivo, nos seios descobertos e deitou-se de bruços para ouvir a solidão. Ela inverteu sua posição na cama, abraçou o travesseiro, rememorou, dormitando preguiça, a noite gratificante com o namorado, após chegarem apaixonados e excitados da boate. Deu-se cinco minutos mais de pasmaceira antes de iniciar o dia, provavelmente a ser atribulado. Finalizado o espaço inapelável para os compromissos inadiáveis que teria, restou sentar-se na cama, vagueando os pés a cata dos chinelos.
Só levantada, no entanto, se deu conta do fato, ao sentir o pé esquerdo menor, algo assim como uns dois centímetros, do que o direito. Os ombros, todavia, continuavam, aparentemente, nas mesmas posições relativas. A primeira reação foi olhar para os chinelos e verificar as suas espessuras, mas confirmou, preocupada, permanecerem como sempre. Em seguida observou, cuidadosamente, o chão, a cata de uma falha, absurda se constatada, e certificou contrariada da normalidade das lajotas cinza, escolhidas com carinho na reforma, para combinarem com a cama e os armários embutidos, suavemente tendendo ao azulado. Ratificou-se a situação esperada, não havia no porcelanato qualquer deslize ou anormalidade. Cuidadosa, claudicando, claramente acabrunhada, entrou no banheiro enquanto apalpava todas as demais partes do corpo, pesquisando alternativas outras, eventuais, de mudanças inusitadas.
            Frente ao espelho, nua, a primeira reação natural foi olhar os pés paralelos, aproximados, e confirmar que efetivamente estavam diferentes, embora as pernas continuassem torneadas, lindas e iguais. Ansiosa, subiu meticulosamente os olhos pelo corpo refletido, contornando as linhas dos quadris atraentes e deslumbrou o ventre exato e perfeito desenhando, com sensualidade, as saliências das próprias formas. Contraiu as nádegas firmes, roliças, adequadas e proporcionais à sua altura, para testar eventual dor, capacidade de movimentos ou impedimentos. Normais todos, até então, os órgãos esculpindo sua silhueta, que vaidosamente a agradara sempre. Respirou fundo, acabrunhada, indecisa. Traçou o mapa das orientações que teria de programar para apoio futuro. Surgiu Rútilo, a primeira lembrança lógica e afetiva. No entanto, ao mesmo tempo em que considerou carecer demais sua atenção, pairou a angústia e a vaidade de exibir-se transmudada, sem saber o limite. Hipóteses sucederam-se.
Antes de definir-se, optou levantar as vistas até os seios roliços e verificou, consolada, estarem enfeitando o busto que sempre exibira com merecida e invejável petulância. O pescoço, sem qualquer marca de tempo, de sofrimento ou tensão, deslizava, sutil como sonho, para gratificar a junção com que a natureza unira seu corpo ao rosto exótico e incomum, mas acima de tudo, atraente. Encerrando o autoexame, ao se detalhar sobre a face, Marzílinha apavorou-se, pois os dois centímetros, faltantes no pé, se acrescentaram à orelha esquerda, que maior, sem alternativa, pendera com fisionomia de descompasso. Involuntariamente à Marzilinha, o ouvido movia-se, em gesto afetuoso, acenando fixo para as lágrimas que começavam a correr dos seus olhos angustiados. Tentou apalpar sobre o espelho a orelha alongada, mas notou que o braço esquerdo encurtara e sobre ele e a mão direita nascera uma membrana escura, coberta com algumas penugens escamadas, emendando os dedos como os dos marrecos do laguinho da infância.
O pavor lambeu as lágrimas, subiu sobre o descontrole de Marilzinha, atacou-a com beiços encarnados e a deixou fora de si. Alucinada, inconsciente, voltou ao espelho e vê, deslumbrada, a orelha normalizar-se à medida que as pernas se enquadravam, as penugens regrediam e as películas sumiam. O reflexo reflexivo do espelho passa a comandar. Tão logo se conscientiza, se tranquiliza, as metamorfoses, explodem arrogantes em Marilzinha. Desesperada, inconsciente, o pavor reassume, paradoxalmente as magias se retraem e o corpo enlouquecido se refaz normal.  Ágeis, as metamorfoses se recolhem ou implodem.
Pelas paredes do banheiro Marilzinha assiste, extenuada, sua orelha autônoma tentar devolver à perna seu excesso de porte. O espelho conciliador procurava anistiar o conflito do consciente com o inconsciente e estabilizar, no ódio, o corpo inconstante. Marilzinha estimula a loucura para devorar a metamorfose. No jardim, a incoerência ouve o beija-flor despedir-se da crisálida ao preferir brincar de borboleta despreocupada.
Ceflorence     04/04/16    email cflorence.amabrasil@uol.com.br

sexta-feira, 8 de abril de 2016

DESPAUTÉRIO EM SOLILÓQUIO
            A cada passo alçava dúvida.  Cada dúvida deslocava com absoluta convicção, de um infinito camuflado de tonalidades alternadas de azuis, para oferecer gotas de demência, que eu escolhia a vontade, embora elas se recusassem a atender-me, educadamente. Assim se iniciou o despautério em solilóquio, atividade gratificante para entronizar o absurdo afetivo no diálogo que mantenho comigo e, limitar e definir, claramente, à distância, a semelhança e ou fusão entre emoções, raciocínio e princípios. Não é processo de caráter teológico, sinfônico, político, racista ou sexual, nem ligado exclusivamente a traços espirituais, acadêmicos ou mágicos. Caso sincronizado até as últimas consequências, sem censuras paralelas, atravessaria com elegância a agradável linha da incoerência, sintetizaria modelos matemáticos utilizáveis em premonições, que raramente se confirmariam, mas poderiam ser muito gratificantes se servidas com vinho tinto ou espumante em reuniões sigilosas. Militantes conservadores e revolucionários consideraram a atividade processo regressivo, reacionário ou fundamentalista, razão de eu passar a evitar tomar posições nestas alternativas em jejum, após as comunhões pascais e em voos de longa distância.  
Com estes pontos claros, cabe esclarecer que o primeiro movimento, físico ou intelectual, ainda não escolhido até então, colocava em cheque se o sentimento seria de saudade ou poderia conter uma dose razoável de vingança. Se vingança, seria por inveja ou por ciúmes? Se ciúmes, deveria considerar se teria agido por frustração ou possessão? Se possessivo, a natureza do objeto amado ou de adoração ficaria circunscrito a alternativas de fuga psicológica ou esquecimento proposital.  Mas o contorno dos verbos não se matematizaram dentro das minhas incógnitas e as intersecções dos paradoxos brincaram de demência perguntando: mas, no mesmo contexto, se o ciúme possessivo nascesse cândido como o silêncio do amor, gerando a suavidade da saudade? Nestas circunstâncias as abstrações se reverteriam e seria justificável o desejo límpido da vingança? Plasmei debruçado sobre a incógnita e utilizei uma sinfonia dodecafônica sem saber absolutamente do que se tratava, para que serviria e se poderia trocar, em tempo, dois absurdos descartáveis por um desejo ainda não confirmado. A psiquiatra perguntou como me sentia, antes de beijar-lhe o auto ego frontal. Passamos a não nos entender apesar da afabilidade cínica. Exatamente neste ponto não sabia se o sentimento de cuspir sobre a alucinada psiquiatra seria racional ou se prevaleceria o sentimento da alucinada médica de cuspir em mim? Como os fatores eram equidistantes não houve parábola a ser aproveitada e prometemos nos reencontrar em datas indefinidas ou alternadas.   
Frente ao fato concreto poderia tentar ser sincero, se esta abstração emocional tem algum elemento de realidade existencial ou optar por um gesto simulado, oportuno e prático nos momentos de tensão ou, por último, ao encerrar, soerguer um supercílio com soberba convencional, quando não se atina com as respostas intimas. As externas são óbvias, basta estender uma concreta carreira de nada sobre um fundo de indefinido, que a solução se posterga enquanto se capta um disparate charmoso, decorativo e inútil. Maturei nesta linha, com a tranquilidade conformada que não chegaria a nada, mas, por indispensável, no caso, questionando se os demônios que me beijam ao dormir seriam os mesmos que, carinhosos, tocam os clarins quando definem que a preguiça deva ser interrompida? Porque demônios? São mais irreverentes, mais achegados à sinceridade, calados por natureza e difíceis de serem interpretados. Com estes valores claros, duas colônias demoníacas contraditórias, parti de forma concreta para empreender diálogo permanente com trechos, traços mentais em movimento, entre o meu sentimento e o meu raciocínio. Intui que são duas abstrações distintas, quando não opostas. Tem sido tarefa gratificante, embora, na maioria das vezes, intermináveis e vãs.
Ao encerramento elegante e circunspecto cabível, poderia formatar a tese com objetos esparsos sobre o subjetivo, a taça de vinho, o talmude ou até o espelho convexo para realçar o orgasmo. Mas optei pela tartaruga lésbica a fim de definir as partes menos claras do conflito. A noite beijou o dia, doparam-me com o sentimento de que não raciocinava. Estilhaçou-se meu consciente. Atribuíram despautério ao meu solilóquio.
Cefloence  28/03/16        email  cflorence.amabrasil@uol.com.br