segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

FUNERÁRIAS REMINISCÊNCIAS.
Convidamos para a missa de sétimo dia da morte de Jose Abinegado das Flores (Zequito), a realizar-se na Capela do Colégio de Santo Eugenâsio. E lá se foi Zequito, sem adeus, sem aviso prévio e sem prazo de validade espirado, pelo pouco que eu sabia dele nestes últimos anos. Era o vivo, mais antigo, que eu conhecera. Conhecemo-nos no primeiro ano do grupo escolar, no recreio rolou uma bola e atrás dela não há moleque que não se arrebente aos dentes na captura e na luta. Zequito era desenvolto no traquejo da pelada. Sempre foi bem melhor do que eu, embora eu tenha demorado a admitir, principalmente para o meu próprio orgulho.
Houve pequena ruptura, na adolescência, causada pela Anita, minha paixão inesquecível naquela fase e que após três meses de profundo amor declarou-me estar apaixonada pelo Zequito por ser muito mais bonito, inteligente e, principalmente, carinhoso. Alguns pileques e o afastamento do Zequito durou só até ela o escambar, também, três meses depois, pelo Vazinho, beque central, pois era muito mais elegante, bem humorado e romântico do que ele. De trimestre em trimestre a pobre Anita espatifou-se no derradeiro. Casou para sempre com o Rola, até que um último enfarte qualquer os separasse. Rola era crápula de carteira assinada, alérgico ao trabalho, estroina pós-graduado, jogador de baralho, aonde até não se dava mal, pois roubava com habilidade e sem parcimônia. A desgraça é que sempre tinha uma barbada no Jóquei Clube que levou tudo e mais algumas casas que Anita herdou.
Cheguei cedo ao evento. Divagava nestes antigos, quando, entra Carmelinho, que corria pela ponta esquerda no então, tirando sempre dois metros de vantagem de qualquer marcador, embodocara como anzol de corveta. Pela porta lateral, só de lado para ultrapassar, invade uma matrona desproporcional à imaginação.  Era ela, Carlininha? Não era justo que aquele corpo e aquele rosto, nos quais eu viajara tanto nos bailes domingueiros, se transmudasse em maciças arrobas mal distribuídas.
Tragédias conhecidas ou não identificadas por mim. Em retirando passei, de soslaio, pela Doquinha, que fora linda, e portava artrose visível em uma plástica cubista Picassiana. Sonhara com ela tantas vezes. Sai do evento com a firmeza de propor às autoridades eclesiásticas que com os modernos meios de comunicação, as cerimônias de Sétimo Dia, a depender da idade do grupo social, sejam feitas só eletronicamente. Só.                                           
Ceflorence 20/12/17        email  cflorence.amabrasil@uol.com.br

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

FANTASIAS, ESTÓRIAS E OUTAS SANHAS.
Evandel Esbézio invadiu o solar dos seus antepassados, os Emboraçais, na Fazenda do Espigão dos Acamênios, que desabitado aquartelava os fantasmas, as tristezas e as cismas e ao qual não retornara por mais de trinta anos. Entrando, um ruído atribulado do tempo surdo, entrelaçado no além, se fez e viu ele barulho esquisito, atropelado entre alguns silêncios. Sabia que zanzava entre os corredores estreitos do sobrado, original figura de sua tia bisavó, gorda, baixa. Morrera solteira, há muito, Tia Biazinha, Beazia Uzeia Emborais. Nascera muito limítrofe e lerda de exuberâncias e raciocínios tanto como assim viveu até morrer também, como quando deus se pôs a chamá-la ao seu lado. Sorria à solidão e carinho, circulando pelo casarão, conversando com as almas dos falecidos que encontrava nos andejares. Arrastava Biazinha, com suas seis arrobas e meia, roliças no corpo baixo, amarrada a uma embira de dois metros, seu urinol de ágata, decorado com rostos bonitos de crianças sorrindo, nele pintado em tons azulados sobre o branco, que ganhara na infância e do qual nunca se separava. Usava o utensilio de ágata aonde lhe aprouvesse para não voltar sistematicamente ao único banheiro da casa enorme, sempre afastado e longe de seus passeios e carências naturais. Não a abandonava jamais, miando ao seu redor, um gato grande, pardo todo, só exibindo uma pinta delicada, bonita, no olho direito. Conversavam nas suas melancolias, ela, o gato e o urinol, das coisas simples, meigas.
Carregava, Tia Biazinha, rosário de graúdas contas de madrepérolas, enrolado em seu corpo de cintura enorme, até o pescoço grosso. Trajava embaixo do rosário só sua única camisola de estimação, que nem por resignação trocava e, incerto dia, há muito, fora branca. As manchas, nódoas das sobras das urinas e poeiras indefiniram a cor. Como aprendera os números só até doze, dizia que se perderia se não contasse os cômodos que atravessasse e quando chegava à dúzia recomeçava eufórica. Recusara-se enfaticamente a ultrapassar o treze, na aprendizagem, pois lhe disseram que teria maus agouros se atravessasse a quantia cabalística. Efetivamente, a única vez que ousou extrapolar o número fatídico arrependeu-se amargamente, pois viu morrer seu sapo de estimação que acarinhava no terreiro da casa colocando afetiva, em sua boca enorme, os mosquitos que capturava. Neste dia, descuidou-se e ao oferecer ao sapo o décimo terceiro mosquito, lamentou-se pelo infortúnio da morte do coitado nas unhas do caracará que desceu dos céus, enviado pelos demônios, com a rapidez do raio e da agonia e o levou para o além. Acompanhava Tia Beazinha um cortejo de morcegos atraídos pelo acre agressivo da urina, para os quais ela ensinava os locais corretos em que deveriam pousar e espera-la. Aproveitava ela as contas de madrepérolas para além de localizar-se na casa e nos cômodos, saber as vezes que usava o urinol e a noite, agarrada ao rosário, rezava um deus credo, que sabia pela metade.
Evandel aguardou o silêncio retornar, enquanto, calado, descia as escadas do sobrado, conversando com suas solidões sem saber se sonhara ou o azul fugira para se esconder no grená do firmamento para brincar de poesia. Era um irreverente.

Ceflorence      10/01/18     email  cflorence.amabrasi@uol.com.br