quarta-feira, 30 de novembro de 2016

AZUIS, CONFLITOS, SONHOS.
Pode-se, do infinito e do além, atender o chamado ao Adhan, a sagrada prece dos devotos islâmicos ao Senhor Poderoso da criação, da morte, da vida. O canto lúgubre e sonoro dos Almuadens, acalentados nas solidões das altas almádenas, que os impuros depreciam suas imagens ao nominá-las de minaretes, reforça a imensidão do poder e da santidade de Alá. A hora é de fé, labuta e destino para a reverência e a genuflexão lavarem a alma e cremarem os pecados. Enquanto os pássaros volteiam pelos mesmos serpenteados do rio encantado destinado à purificação das virgens, nada melhor do que se envolver abismado pelas ruelas e becos, a cada passo dado, ao desviar dos tapetes cobertos de oferendas, ao léu, no mercado de Ranjihad, na Estípia Superior do Grantihá. Alá seja maior e proteja sempre os justos nestes destinos de amor faltante e angústias imprevistas, enquanto não os conclama ao juízo eterno. Exatamente com os indispensáveis cuidados tomados para os pisares cautelosos não molestarem as oferendas fartas expostas, circulam os transeuntes carentes à cata das escolhas das melhores fantasias e das mais delicadas imaginações.  
Cirandam despreocupados sem maiores atenções os curiosos, até se encantarem, estarrecidos, à frente da tenda de Lehann Bandiche ao verem, descambando, esparramados da porta até o mais íntimo interior, aconchegantes, mas desordenados, os melhores delírios e os sonhos mais sutis por ele roubados das deusas imagéticas. Meticuloso e tão logo as chuvas miúdas e alegres de verão terminem de brincar de enxaguar o infinito, Lehann se atiça competente para o sequestro dos sonhos novos e delírios saborosos, que as deusas, cautelosas, tecem no âmago das suas intimidades, com carinho, para alimentarem os menestréis e os poetas. Reclamam as Deusas-das-Cores entrelaçadas ao pé do arco-íris, serem sempre os melhores e mais caprichados sonhos e delírios, que o sagaz mercador, Lehann, lhes surrupia nas caladas das madrugadas, sem as recíprocas compensações de fantasias e, pior, sem remorso algum. Fantasias são as matérias primas, edulcoradas, revestidas de delírios para refazerem eternamente os devaneios imberbes.
Os sonhos e os delírios roubados por Lehann são disputados por seguidores abnegados e viajantes indômitos, após atravessarem desertos de insanidades e mares bravios de loucura. As virgens chegadas escolhem seus sonhos na tenda de Lehann para despirem seus véus diante dos príncipes idealizados em sonhos. Os moços descem de seus corcéis fantasiados para, ao luar, imaginarem ousadas bacanais com beldades acaloradas, nuas. Os idosos ouvem em silêncio e dos confins, os ritmos dos próprios desejos inconscientes, ao sincopado dos Almuadens, aguardando as promessas de garantirem lugares destacados, entre brumas doces, eternas e suaves, ao fantasiarem seus sonhos de além ao lado de Alá, todo poderoso.   
Madrugada: tão logo o silêncio se apodera das almas e todos adormecem, deusas e Lehann conchavam no recôndito das iluminuras, ao pé do arco-íris. As deusas se refazem, sorridentes, rastreando as virgens, os mancebos, os idosos e em surdina escambam os sonhos roubados, então sob os travesseiros, pelos pesadelos mais calhordas. Os almuadens lançam sobre as deusas e Lehann as benções calmas de Alá.
Ceflorence    22/11/16      email   cflorence,amabasil@uol.om.br

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

RENASCENÇA E ENTROPIA
            Muito nos primórdios, antes até do entrelaçamento das poesias e dos azuis brincarem de beijos ao gestarem utopias, quando as lágrimas se recolhiam e os sonhos desabrochavam, mesmo anteriores a criação do aqui e do agora, só se apresentava ao infinito e ao porvir a sólida imensidão do nada. Tanto que se deram os relatos, estes, transcorridos nos inícios dos quatro bilhões e meio de maturação, mensurados em anos de fantasias, os quais precederam o período posterior compilados em badaladas longas, mas decididas, já nos atuais eventos-luz. É fundamental registrar, portanto, que estes fatos lastreavam-se no abstrato, no imaterial, meticulosamente grafados só sobre o além e envoltos em brumas suaves, mas vazias. Nestes incontáveis etéreos bailavam ao sabor dos acasos indeterminados e sem qualquer rumo ou objetivo o conjunto de sete deusas, gestantes posteriormente do que se chamaria universo. Na contrapartida dos intangíveis, instigados de despautérios, tresandavam os seis demônios, articuladores do caos e da entropia. Foi assim que se consolidou, passados milênios, com estas matérias primas básicas, criação e caos, então manipuladas em conjunto pelas deusas e capetas, o incomensurável e eterno cosmo.
Nestes idos agitavam-se babeis de desentendimentos entre os demônios eriçados e as excitadas deusas, inebriados de nada, os quais, pura e simplesmente, perdiam-se pelos labirintos dos infinitos vazios. Pairavam em todos demoníacos endeusamentos angustiados pela indefinição do futuro. Confirmavam-se, portanto, as afirmações: a angústia, filha da liberdade, desandava entre as carências das opções sem saberem as divinas e os endemoninhados como fugirem das inércias pachorrentas. Habitavam aquelas deusas criadoras e os demônios caóticos imensos despovoados à esquerda do todo poderoso nada e este assistia indiferente alongar-se pela sua direita sem conta o vácuo perene. Neste inacabado conflitante porvir as alegrias e os motivos da vida como a ética, o ódio, a moral, o pecado, o amor, a inveja, o arrependimento, a preguiça, a luxúria, a saudade, o egoísmo, o gozo, a ânsia e as infinitas emoções, incontáveis, substâncias indispensáveis para fruir o existir, ficavam zunindo desocupadas, desvalidas e soltas em torno dos deuses e capetas ociosos.
Deusas e demônios, na solidão do nada, passaram a brincar de perseguir os desejos, os amores, os ciúmes, os gozos, as emoções e os sentimentos todos que fluíam pelos vazios. As sensações bolinadas e trocadas de mãos carentes foram acarinhando as deusas e excitando os demônios. E das bolinas trocadas se instigavam os afetos, lambuzavam-se os desejos, desapareciam as distâncias, lambiscavam-se os ciúmes, enalteciam-se os gozos: “censuras libertem-se” esgoelavam os infinitos a cata dos desejos. Delirante amanheceu o azul imenso da orgia retardatada e o provérbio conchavado ao infinito sorriu ao despedaçar o nada. Deusas eróticas, carentes, arreganhavam desejos úmidos excitados para receberem os caos diabólicos eriçados.
Deusas- demônios, gritos felinos, prantos, orgasmos: sorri deus, amassando o barro, com que lapida à sua imagem e semelhança, o homem, o amor, a inveja, a ódio. Cria, pois a vida, o cosmo, o sonho, o delírio e assiste o caos e o imponderável.         
Ceflorence    16/11/16      email    florene.amabrasil@uol.com.br

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

ANTROPOFAGIAS E SUCUMBÊNCIAS.
Por falar, foi ali que se deram os ocorridos, como a corruíra viu e cantou sisuda, fugindo abeirando por baixo do gordura verde, atolado de viçoso, que escorria alegre e exibido até o curral da Joana Caolha do Piritá; morta então! E nem se deram conta os chegados de satisfação prestar, pois foram todos comportando assemelhados, sem se preocuparem sequer com separar desaforos, gestos e destinos, meio no aprendido dos iguais, como se punham os antigos em dando de atender procedimentos antes das carecidas rezas para defuntos, para decisões das tropelias e para repartições dos deixados. Assim se pôs e por precaução ninguém desmentiu ou desfez o que deus acordou. Instigados de ganâncias, desolhando de lado, cuspindo pardo, atrevidos, mal proseando, arribando de cada canto da corruptela, Inhutá dos Perdões habitantes, traziam proposições, eles só, aos magotes, de dividir desaforos e conjuras. No intento, muitos, de se garantirem das pequenas para as miúdas insignificâncias deixadas pela morta, ida de pouco, sem nem maturar em defunta consagrada pela extrema-unção pedida nos corretos das crenças.
Malita escolheu o xale vermelho, enfeite da avó, para visitar o cônego nas missas de festas e o vestia, de quando em quando, no raro em que o avô a levava de charrete ao baile na tulha. Por ser filho de cria do Borá, irmão da morta recente, Ciborinho da Pega, peão conhecido de cavalo xucro e redomão do arruado e das dobradas, fartado de petulante, atinou de despendurar lombilho velho e de se fazer dele dono, por se ver merecido. Mosquetinho Juruba unhou a cartucheira e o corote maior de pinga para justificar a dívida que a recém-falecida pendurara na compra de seis frangas carijós, uma peneira de taquara e um urinol de ágata. Nelinha puxou da cristaleira torta dois pratos desbeiçados e a panela de ferro de fritar torresmo; mal encarada, apanhou os trens em nome da mãe, que não veio por ter lavado a cabeça e entortado a boca, convulsão. A mãe, velha, prima da defunta, ficou secando ao sol se pôr, até.
O último a aconchegar, aportando destino, foi Cônego Gefrâo de Pádua, que na provisão dos confessionários anotou, correto, que no oco disfarçado atrás do forno de lenha escondiam-se, na bruaca, mil contos de reis. Pertinente de fé apurou o havido, por seu sendo, no bolso da batina; feito o tido por bem, liberou a alma pela extrema-unção. O silêncio obedeceu ao sol, deus cerrou os olhos para Inhutá anoitar recolhida.     

Ceflorence    08/11/16    email    cflorenceamabrasil@uol.com.br

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

MIILINHA
Encorajado, só agora, arrisco escarafunchar medroso passados e tristezas. Ao me dar perdido pisoteio devaneios, como os dos potros embolados que me entusiasmam espelhando fantasias, brincando de solidões e demências ao achegarem às beiras das aguadas fartas do Puntiarã. Por agora repiso minhas ânsias carentes de ousadias. Ousadias jamais emprenhadas, mas fantasiadas, de escrever-te ilusões minhas, o que sentia e, por bem pôr-me, do que ainda sinto. Isto tudo para o vagueio de campear nos telhados velhos e nas paredes escorridas de mofos e decadências do sobrado de onde nunca fugi. Deles, emparedados telhados, abrir-me só agora a ti. Estes desacertos se dão, ao perseguir os desenhos dos bolores grafando, fundo, as saudades e melancolias, do sobrado nosso, nosso da infância juvenil.
Nunca compartilhei, inibição e acanho, digo agora, meus desejos e sonhos por ti, mas, por assim sendo alertado, soube por Leta, minha irmã, também tua prima, que voltarás a Assunhãe e ao sobrado, após sumires por tantos. Naquilo e naquele, aonde e quando o Puntiarã dobra e encobre, te carreando em desfeita a mim, quedado ali eu calei, arrastando junto tua ternura e minha paixão, e o trem sumiu. Abro só agora os desejos para conheceres que na plataforma fria ficamos, abanando mãos e sonhos vazios, a angústia soberba, acossando meus pedaços e o cipoal de desespero. Intuo que tu sabias, sem quereres saber, que tal se dava assim tanto, pois nem olhastes para o adeus e para as duas lágrimas, mas disfarçou fugindo, ou fingindo, tuas vistas à garça pescando melancolias sobre o Puntiarã; e o trem se indo foi. Camondinho, tropeiro, resmungava: “o carnegão difícil de romper é a mentira que contamos só a nós”.
O passado, o presente e o futuro são meras ilusões embaralhando devaneios. Tanto sim, que ainda tropico hoje nas mesmas tábuas velhas, rachadas, perseguindo tuas sombras e ouvindo teus sorrisos, sobre as salas e os corredores do sobrado. Não estarei aqui na tua chegada: o trem carregou meu limite de angústia e tristeza em tua partida. No entanto, o passado estará inteiro no presente quando o futuro próximo te trouxer. Os três momentos te envolverão de melancolia ao te saudar. Verás Leta debulhar pela casa, desde o alpendre até o seu quarto, as pétalas das camélias colhidas do vaso grande, pois acreditou sempre que o Dominho, seu noivo assassinado na zona, há muito, voltará pisando macio as flores para estilhaçar a tristeza que a tomou desde então. No sobrado, o tédio se apascenta galhardo. Escondemos do Vato a garrafa de pinga atrás da bilha d’água e fingimos que ele não sabe e ele disfarça não beber. Coisas do sobrado, dos espíritos mentirosos e que nos sabem bem. A alma de Vó Tiúca estará à janela esperando o Vô voltar do além; não te assustes. A maritaca chocou, como todos os anos, no forro e a brisa beijará, de novo, o infinito e o azul.     
 A ousadia, depois que irrompeu de manhã pelo sobrado, pela minha angústia e pelos meus arrojos, se acovardou de sobejo, subiu pelas paredes encardidas e me espiona do forro carunchado. Eu, dissabores, como sempre soube fazer, caminharei agora, choroso, às margens do rio. Ali continuarei mentindo-me acovardado, depois rasgarei estes rabiscos lamuriosos, lançá-los-ei sobre as águas mansas do Puntiarã e fantasiarei que te chegarão pelos remansos das ilusões e acasos dos sonhos. Beijos.
Ceflorence    31/10/16        email   cflorence.amabrasil@uol.com.br

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

EROS-AMÍGDALAS E CORRUPÇÃO
Recentemente, conhecidos cientistas dedicados às pesquisas em neurociências concluíram que a prática constante da desonestidade e da corrupção reestimula e reforça o próprio vício, incrementa a sensação de impunidade e, de forma sintomática, reduz o complexo de culpa. A humanidade demorou a comprovar o óbvio, mas, devagar, obrigou-se a descer das árvores e conscientizou-se de que todas as trilhas e passos, depois dos tombos, levariam a Roma.  Eros e Tanathos nunca se amasiaram em beijos, mas deram sossego: os tempos fizeram-se difíceis, mas foram a troteados. O inusitado, para mim, deste trabalho acadêmico, é a constatação de que o ponto real, fisiológico, para encontrar e poder medir este fenômeno de acomodação à desonestidade humana, ocorreu e comprovou-se estar localizado, fisicamente, de forma madura e entranhada na estrutura do cérebro, exatamente em uma área denominada amígdala. É neste ponto, na nossa amígdala cerebral, que a corrupção é acarinhada, gratificada e estimulada de maneira serena e crescente.
Na mesma virtude de destinos, quinhentos anos andaram desde que ao ensejo de marcar o rompimento e rever, revolucionariamente, o pensamento medieval, Descartes já assentara também na sua idealizada amígdala, que não podemos constatar se coincidente ou alternativa a dos seus colegas atuais, como sendo o local, o centro e o momento da fusão de entrelaçamento da alma e do corpo. Este ponto de junção entre a matéria e o espírito não foi objeto de esclarecimento de Descartes, se seria, adicionalmente, a real alcova, imaginária e fantástica das gestações de sevícias carinhosas e sexuais. Ao que tudo indica, escapou de definição, do gênio e do filósofo, se trincheira acalorada, inexpugnável, poderia ser a sua amigdala, talvez, para os desejos, para as fomes e para as ansiedades. Por último, perguntaríamos sem ser excludente ou exclusiva, a amígdala seria ponto ideal, exato, na mente em ebulição para devaneios transcendentais, sublimes e espirituais e assim criação dos deuses e dos demônios? Mas estas questiúnculas materialistas menores não seriam jamais objeto das atenções dos iluminados e muito menos de Descartes.
            Nisto tudo, para ser sincero, a que cheguei depois de pensares soltos, tivesse eu a alegria de conseguir o meu abajur lilás, com que sempre sonhei desde que se me dou por ser, o chamaria de amígdala, pois teria ele o condão de unir, como as amígdalas nobres dos pesquisadores e de Descartes, através da luz, a sutileza espiritual da leitura, que minha alma absorveria e fundiria com a materialidade concreta das palavras, dos conteúdos e das formas ricas dos livros. Não sei o que o Phenóxer, meu cão censor, velho, banguela e mal humorado, dormente sempre ao lado esquerdo da cama, responderia sobre estas ansiedades lilases, pueris e dispensáveis. Com certeza, contumaz crítico das minhas insignificâncias e mediocridades, nada mais do que puramente pena e desânimo por suas frustradas tentativas de reabilitar-me.
            Noite - Eros, Thanatos, Descartes, Phenóxer e eu sumimos nas entranhas das amígdalas fantásticas e das corrupções inacabáveis. Jubileu dos leitores agradecidos.
Ceflorence         email    cflorence,amabrasil@uol.com.br