quinta-feira, 26 de outubro de 2017

ENTERRO DE CAMILÓ

Camiló nascera em Oitão dos Brocados, filho de gente sertanejada ali chegada há mais de duzentos anos. Se fizera trançados de couros por heranças de conhecimentos e destrezas, jogador de truco referenciado e por último acolhedor de dores e almas pelos tombos de peões de burros xucros, mulher da vida apanhada de cafetão e outras desditas. Por ordens das desfeitas fora assassinado por conta das suas habilidades e carinhos incompreendidos. Seguiram-se as exéquias como se deram e das quais damos nossas vistas.    
O cortejo fechou a rua principal, seguiu o instinto da flor de maracujá, que ele carregou quando atirado, caminhava lento tudo no embalo do caixão, para não acordar a poeira e assumiu o caminho fronteiro da Capela de Santa Eulábia, aderida ao Cemitério da Saudade. A igrejinha deu providências de atender o corpo de Camiló sem cobranças de passados e nem promessas de futuros. Saíram todos, gente por gente triste enfileirando, muito entretida nas ordens das melancolias respeitosas, para enterrarem o corpo, abonarem a alma e guardarem a saudade. Lágrimas passivas ouvindo a passarada entretida em seus atrevimentos. Na porta da venda do Mutalé Maneta, como ali pendia de visada direta ao cemitério, e trilha do trançador era rotina sabida, Camiló se agitou na rede deixando a flor cair na porta como mereciam as insinuações, para serem apaziguados os passos com a derradeira cachaça.
Minhoco deu muita razão ao cadáver em respeito às mesuras da flor pendida que mereciam ajustados sentimentos ao passarem gentes tantas em reverências funerárias por ali e cabia mais do que merecido aquele trago de despedida na venda que assistira o trucador por inesquecíveis. Conversas trançadas, tramoias ditas, afetos foram colhidos nas lágrimas do Mutalé antes dos definitivos. O povo assumiu resguardo, instigou Camiló saudar as dependências do Mutalé Maneta em memória ao passado e em abono a partida. Hora chegou correta com o cortejo ao portão do cemitério, povo machucado de tristeza adentrando ruelas de corredores estreitos, sinuosos, confusos entre os túmulos velhos saudando vizinho novo. Uma vala, sem muitas querências de vaidades, aberta esperando a encomenda, para finar em seguida nos atijolados de adobes pobres por merecimentos se ajustara e cruz postada na cabeceira.
Cadinho, filho do falecido, plantou a cruz de cedro na virada para o por do sol e na sôfrega da despedida da vida, intuito de Camiló poder acompanhar o passeio do astro durante o dia todo, como sempre fizera nas beiradas das ruelas, cantochando mesmices enquanto tramava couros, adivinhava sortes e enaltecia com os mesmos dedos as tristezas alegres de sempre nas assistências aos sofridos, às moças das vidas, aos peões das fraturas, às crianças dos sonhos. Era a imensidão de Camiló e seus conflitos.
O cedro poderia brotar em árvore de respeito e porte, como é das temperanças dos cedros e contar muitos anos depois as proezas dos dedos do Camiló Prouco, o homem mais habilidoso de Oitão e outros sertões por onde as suas venturas se desacomodavam nas invejas e nas carências das tramas, prosas, prendas e solidões das felicidades sofridas.
Cada um se deu por jogar um restolho de mão cheia de desesperança para a terra dizer adeus e o amém recolher o fim.

Ceflorence   19/10/17     email    cflorence.amabrasil@uol.com.br  

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

ESPAÇOS EM AZUL E OUTRAS CISMAS
Confirmadas foram em diretas linhas dos oxalás, por destino e paixão dos astros, que careceria cautela em cada brisa, para chegar disfarçada, renascendo diariamente na várzea espraiada de onde o Tomuaiacá, rio das magias e contos vindos dos sertões e das matas dos mistérios, desaguando na Baia de Acarampó, enfurnava agraciado. Antes da brisa se preparar para subir à cidade alta, enrolava-se faceira nas areias, refrescava nas águas das vertentes das marés mansas, brincava maneira em abertas rodas de capoeiras, artimanhas coloridas das gingadas negaças, rabos-de-arraia, meias-luas, benções, molengas desfeitas, generosas pausas, atiçava o berimbau em sustenidos às divindades, mas nos respeitos aos imponderáveis.
Vestida assim de silêncio e dogma, só então a brisa encravava pelas escadas do frontão, rumo à matriz soberba, se persignava com a canhota, apesar das contrafeitas das insinuações, enfezava nas diligências, arrebanhava a imaginação para conferir se não faltava nada para o dia começar a enlouquecer, suavemente, como era carente para os povos e gentios. Nos conformes adequados, como rezavam os pescadores, achegados cansados em suas jangadas embandeiradas, a madrugada só se desfazia depois destas querências cismadas dos ventos e das brisas, trazidos por eles dos aléns das quebradeiras das ondas, oferecendo as graças dos netunos e das iemanjás.
Nisto, as providências descarregadas nas praias, acatavam, derradeiras, as ordenanças dos sinos mascateando suas delicadezas e encantos nas cismas de alongarem as tarefas pelo cotidiano. Por ser de prudência merecida, as estrelas foram se acomodando em apropriadas solidões depois de brincarem de pirilampos com as escuridões, fartadas da noite, exaustas dos bailados e movimentos nas abundâncias dos firmamentos. Entrecortadas se deram as providências como as manias se faziam para repetirem as cismas das igualdades. Dia comum só se daria se os feitiços desacomodassem de suas preguiças para jogarem destinos e gentes a cata de suas providências.
A catedral refazia as badaladas remarcando os quartos, as meias e as inteiradas horas, para os fieis se aprontarem para as orações, mentiras, confissões, fingimentos, comunhões, invocando e provocando os santos das devoções preferidas, na falta de outros cinismos. Tempos mimosos, sol já assumindo seus desacordos e calores. Coisas miúdas de vendas nas ofertas e negócios, ervas curandeiras atravancadas nas calçadas quebradas, prostitutas a negociar mixes, travestis empolgados, enveredavam pelo átrio para completarem o dia. Ônibus, carros, pedestres, circulando a cata de destinos. 
O chafariz, como era de sua magnitude italiana, festividade, se empolgou sobre o passeio, desafogou de suas bordas rebuscadas em rococós e barrocos adventos, desatrelou do patíbulo os melhores anjos e querubins bailando entremeados em seus afrescos para ensinarem risonhos suas manias aguadas aos curiosos e aos pássaros carentes de nostalgias e sonhos. O dia se fez em demências saudáveis e cores ruidosas.
Ceflorence       10/10/17         email   cflorence.amabrasil@uol.com.br

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

PREMONIÇÕES E OUTRAS SANHAS

O tempo cismado se pôs em versos, abelhudo nas premonições a virem, e por assim se deu que além dos percalços dos couros e das taquaras apaziguadas e entravadas entre si, sob as preces das cantatas e das prozas dolentes, Camiló, sertanejando seus sertões de Oitão dos Brocados, passou a se atrever, por ocasional socorro a um repentino imprevisto, a outras artimanhas de curador e vidente. Soberbo de curioso nas coisas endiabradas insolúveis e descabidas, começou o trançador a usar nos tateados de aprendiz e rezador de cantochões murmurados os mesmos dedos ágeis, definidos e embriagados de energias tantas, porosos de ternuras, calejados nas carências, afrontando com macias e afetuosas sedas nas horas justas os artelhos destros nas imbricações, para massagear os corpos maus sucedidos em quebradiços e ouvir as almas das agruras postas.
O acaso primeiro veio em queda de moça da roça afastada, chegando montada a Oitão e a besta alazã, sem sobreaviso, com buzina de caminhão cruzando caminho na boca da noite passarinhou seus desmerecimentos. A jovem não sustentou refugo picado do animal assustado, caiu frouxa na poeira seca com o ombro torcido visto. Estiraram, desmaiada, a menina da mula alazã sobre o balcão sujo da venda do Abigão. Camiló encostado na ponta da venda, dando conta do gole seu derramado, mais o baralho de truco para os desafios, foi amoldando aconchego de curioso e palpite, viu com olhos matreiros a desfeita mal amparada do ombro deslocado, apalpou os vazios dos cuidados carecidos. Acatou Camiló uma correia de couro ajustada aos provimentos deslocados, atraiu o músculo, a omoplata e a sanha deslocados para as corretas posturas, enquanto a desfalecida, no abandono do balcão, se desfazia de sentir, falar e dar de si notícia. Muito aprimorada nos intuitos a menina, desdisse do susto acordando, se remendou das vergonhas sobre o balcão, retornou dos seus aléns, ressabiou nos olhos dos em-tornados carecendo choro e carinho, mas curada das mazelas.
A doente sarou assumiu a mula de volta para casa e destacou como sendo a primeira providência amena, terapêutica, justa, de Camiló passando a se tornar trançador, doravante, também das almas e cismas. O trançador do Oitão, brioso de cerimoniais e ciências, foi empertigando nome ajustado e conhecido por cerrados e sertões de curador dos defeitos e adivinho das cismas. Da manobra curandeiras definiu Camiló à moça o uso de laço verde, esperança, amarrado no pescoço e deixá-lo cair brioso pelos seios mimosos por um quarto de destino e pendurar o braço do ombro magoado, emparelhando semana corrida inteira para assegurar das certezas de cura.   Tempo andou rompante como cascavel no cio, chegou maturado de conversas sobre benzeduras e outras estrofes, azucrinou sina e entre o sol se pôr e as estrelas ajustarem as coisas da noite mugindo, caiam nas mãos do trançador-benzilhão, curador das ânsias, as desditas não resolvidas. Quando nas casas das moças se altercavam desditas de desamparos de mulher querendo atear fogo no álcool embebido no próprio corpo, desforra de cafetão embriagado por corno tido, coronel salpicando concubina de rabo-de-tatu nas desfeitas do namoro pega, a solução no arruado era Camiló desenrolar do truco ou suspender da cachaça que castigava frouxa de bem querer e socorrer o destino.
As famas das benesses, das bênçãos, das curas cresceram nos volteados dos ventos contadores de casos e Camiló, nome benzeiro, se esparramou nos cerrados, nas  desfeitas, nas carências.                                                                                    
Ceflorence        04/10/17    email cflorence.amabrasil@uol.com.br   

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

DESPACHO E DESPEDIDA

                        Nunca entrara em bordel, o retirante a cata de seus futuros. Se pôs no desfecho das sanhas para aforar e coincidiu tratar de premências nas casas das damas por desfortunas das cismas. Mas diferente dos sonhados, desfez dos trejeitos e manias. Imaginava a maravilha dos pecados saborosos rodopiando pelas vagadas cadências dos andares flutuantes, enfeitando as paredes, tetos, imaginações, os abajures sombreados, fantasias. As portadoras das ternuras deixariam cair pelas coxas, pescoços, seios, nádegas, insinuações delicadas, sem preconceitos ou restrições, entrelaçando os cabelos soltos, ousados, esvoaçantes, perfumados. Roupas transparentes caindo cuidadosamente sobre as carnes palpitantes, voltadas para os céus e pedindo que os pecados lindos e os desejos azuis debruçassem sobre seus lábios para beijá-las infinitamente em orgasmos. Jamais poderia admitir tantas mesquinhezes, dispensáveis, que amulheradas putas tivessem corpos marcados de cicatrizes, pelancas soltas a serem escondidas e embora transitassem seminuas de roupas pobres e rasgadas, despertassem nenhuma preocupação dos olhados para não estorvarem as liberdades.
                        Indefiniam pelos corredores, quartos, a cata do único banheiro sujo, velho, para se acomodarem como gentes comuns nas urinadas e cagadas como procediam as fêmeas outras, tanto assim as cabras, as carentes das vidas. As andantes mulheres da zona pareciam assemelhadas à sua mãe, irmãs, vizinhas, gentadas pessoas indefesas, tristes, esperando o nada passar para não se assustarem. Fugazes e ingênuas dos cotidianos, sem aleluias ou estardalhaços, desmereceu Cadinho as senhoras prostitutas do sertão com muito dó, pois eram, por serem, tão constituídas de infelicidades idênticas.
                        Partiu, sobrou, sem dizer por que, uma réstia só de nada de água no Riacho da Perobinha, para nem arrastar sorte pela vida que viesse, enfezou Cadinho, sertanejo, retirante. Enfronhados desenfronhados fins, conflitos atiçados nas indiferenças e gritos dos prazeres. Adeus, oh deus dos infelizes e foi Cadinho subindo as escadas, para desaprender um pouco do choro, até esgueirar-se sem afobação pela porta do fundo do armazém do Abigão. O vendeiro retornara à depressão, sentado, enviesando os olhados para os despropósitos, mascando o palito de sempre, aconchegando um cafuné no papagaio mudo, esperando o nada entrar pela porta, em vez de Cadinho.
                        Resolvidas as teimas últimas com o vendeiro, adeus deu, mediu o sol começando a se esconder por trás da Forquilha, aprumou firme, calado, subida da serra que conhecia tão bem. Nunca atinara enfrentar o mesmo pó, caminho igual, sina repetida, pensando consigo no mais fundo, ele, por que a alma doía tanto? Atentou, foi atolando mágoa insolúvel, última, na sabedoria amarga pôr levar consigo um quase nada de pouco, além das roupas e farnéis, mais o desespero do punhado de fim sem volta e esperança, para oferecer às meninas irmãs que careciam partir sozinhas. Subiu sem mais assobiar como era do feitio. O curiango desceu de suas indiferenças, olhos muito marejados de tristezas e ansiedades, pousou no moirão das suas afeições e métodos, para avisar que o cavalo mandara recado para Cadinho chegar a tempo de ainda vê-lo vivo, se quisesse, embaixo da moita de bambu, lugar mesmo das conversas que estiveram tendo por último. Enfrentou as vistas das meninas especulando caladas das janelas pequenas, lembrou que era Cadinho, sertanejo, órfão de pai, sem mãe, arrimo das irmãs e não procedeu falar de si ou acreditar na realidade. Quem sabe? Parou por ai e nem cismou mais até enterrar o cavalo e despachar as meninas.

Ceflorence  26/09/17        email   cflorence.amabrsil@uol.com.br