quinta-feira, 22 de junho de 2017

SONHOS E MELINDRES
Não deu conta, Liborinho, língua de sesmaria e outras maledicências, se ouvira do vento do Pequeri, rio ajustado às mandingas e às sombras, corredeiras cascateadas e piscosas, insinuadas Serra do Quebra Cangalha abaixo, naquela madrugada em que os vagalumes enfeitavam aos tantos as suas margens, ou se vira derrubar-se cansado, armar tenda e apascentar cavalo, um romeno aciganado, sem gesturas de louco ou maldade, fala enviesada, trôpego de verbos, olhar manso com as almas. Foi neste ritmo que Remorso do Pequeri, corruptela de poucas euforias e viventes, figurou achego de Giorto Raico. Os conflitos se ouriçaram, a criançada aderiu aos provérbios, o cachorro entremeou lampeiro para arriscar sobras de quirelas de farnel ou tristezas e a vida embalou-se em brisa fagueira abeirando às margens, beijando as matas. A juriti não saiu do ninho, mas nem se intrometeu nos propósitos, tanto quanto; só assistiu.     
Chegou com o pão quente e o leite gordo a nova. O gentio veio encostando, beira d’água, soslaio, beiço mordiscado, modéstia fingida, cuspida de lado. Sabia-se que a primeira investida caberia ao Zeca, vereador, que por tradição perdida nos antepassados substituiu o pai, Coronel Binho, na política. –“Bom dia, que mal lhe pergunto, vem de longe, oh moço”?
            -“Nem tanto, cambaio por estas beiras do rio há bons tempos. Só estorvo quando encontro desatinos sonhados na contra mão do querer a se embaralharem com as fantasias”. Ruminou o cigano Giorto. O vereador, aparceirado rumando à matriz, convocou plenária das lideranças para depois da novela, nos meados do pife-pafe, antes da zona, para os procedentes. Ocorre que o destino, que é mais tinhoso, deixou Corinha, mulher do vereador, se anteceder aos momentos. Nascera e fora criada ela, rio acima, em Pedra Velha, local por onde Giorto já havia se sacramentado habilidoso hipnotizador de sonhos e fantasias. Corinha contou-lhe que ensimesmava, após acomodar as crianças, pois o marido se alongava no baralho e outras adversidades fora de casa. Ela se desfazia em pesadelos, quando sua língua serpenteava enorme e ao tempo em que beijava o Zeca, enrolava-o, sufocava-o, alternando amor e ódio. Ordenou-lhe o cigano comprar véu, o mais transparente, com as cores que lembrassem uma cobra coral. À noite, quando Zeca chegasse, ela deveria usar a meia luz só o véu e imbuída de que era a própria cobra no cio, recriar enlevos magnéticos, sensuais, em torno da cena, esparramar o maior número de cartas de baralho pelo infinito e, com a sua língua sibilina, tentar envolve-lo, fantasmagorias. O cigano entregou-lhe pó afrodisíaco para ser esverdeado sobre os sonhos, aromatizado em azul pela madrugada, desfolhado sobre ambos nos orgasmos candentes. Deu-se.
            Não houve tempo de Liborinho consolidar todas as fofocas rastejando do Grupo Escolar da Dona Melnera ao confessionário do Padre Continho, para serem espalhadas por dias agitados. No entanto, corria na maçonaria, na casa da Vaninha, cafetina, até no Boteco do Maneta, que a freguesia e a frequência dos adjacentes diminuíram de forma graúda em todos os recantos. As afetividades domésticas se acentuaram vigoradas, progressivas. Com todas as honras, coube ao Zeca, vereando, criar ONG para tratar de assuntos afetivos. Indicado foi o cigano para atuar com total liberdade nas controvérsias das afinidades. Corinha encarregou-se dos véus e das ternuras. A vila acentuou majoritária nos registros dos nascimentos e batismos por bons verões. Pois!     

Ceflorence 12/06/17            email cflorence.amabrasil@uol.com.br

quarta-feira, 14 de junho de 2017

DENÚNCIAS DOS INTOCÁVEIS.
Era um fim de jornada, dura, sem provérbios ou insinuações, e meus frangalhos se preparavam para acabar de limpar as sobras do dia deixadas pelas visitas no Museu de Arqueologia. Estirei-me, cansado, naquela noite fria, sobre uma pedra lisa, porte de um adulto médio, aonde se lia: “-Pedra da Paixão – Constava da tradição Híctia que nos dias dourados, dos anos dos desejos, fundamentados nas fazes exotéricas das luas, permitia-se às deusas levarem os crentes às fantasias amorosas para quem se abandonasse em sonhos sobre os carinhos de pedras como esta”.
Segundo os imaginários Híctios, os princípios dos prazeres seriam reproduzidos cravando que a beleza do infinito deveria ser esgarçada entre os amantes que se amalgamassem nos deleites das pedras das paixões. Sob as nuances das deusas do amor, as pedras absorviam os efeitos das paixões e quem sobre elas repousasse, viajaria entre infinitos sonhos e fantasias como só ocorreriam aos bem aventurados nos momentos dos orgasmos ideais.   
Antes de lançar as afirmações, que li com carinho, à vala comum do absurdo, lembrei-me que várias crenças expressivas em fé e convicção jogam com imagens semelhantes. Beatifica-se, encarna-se, consagra-se e sacraliza-se, sobre inumeráveis objetos e pessoas as paixões e os ódios. Mas aquela colocação da pedra, além de interessante, era bastante criativa, convenhamos. Enfim, por ainda pendentes de definição os aleatórios infindáveis da teoria quântica, não se deve ser cético jamais.
Simultaneamente à leitura passei com muita calma a alisar a pedra, para limpá-la, como faço com todas as demais peças do museu, com tranquilidade e carinho. Os movimentos sincopados da mão que a alisava, a releitura e o cansaço da madrugada, alienaram-me completamente, não sei se para um sonho, uma hipnose ou uma alucinação fantástica. Brotou então do infinito, envolvendo-nos, a pedra nua e eu, como sendo alvorada de desejos, nuvem azulada etérea que nos transmutava em voo sereno e constante, para um apocalipse sensual e nos arrebatando em amor, paixão, sensualidade, desejo, carinho, prazer. Transmudamos envolvidos nas fantasias mais saborosas e eróticas. Talvez nem a morte, com a alegria do encanto dos anjos, fosse tão efervescente. O sonho se encarnava em total realidade do descompromisso absoluto e o que se atribuiria a censura se transfigurava para o êxtase da virtude. O mundo surrealista efervesceu em meus êxtases e sumi completamente no indefindo. O cosmo nos devorou. Paixão e desejo aglutinaram-se em massa disforme, explodindo fantasias orgásticas até que o sol calhorda da realidade, pelos vitrais do além, despertou-me da luxúria agarrado à pedra. Nós nos beijávamos.
Assustado, sem saber por onde ser e onde estava, arrebatei as angústias e os panos de limpeza, fugi pelo canto aberto da esquizofrenia. Não separo, até agora, se o pavor ou o alento de agarrar a explosão vasta da nuvem azulada, que se esvanecia para o eterno, seria o meu objetivo ébrio ou minha demência chegando a cavalo.
Poderia ter criado, sonhado ou imaginado tudo. Mas até agora ouço, ao distrair-me, só, uma voz petrificada perguntando do silêncio. - Você volta?
Ceflorence  07/06/17             email  cflorence.amabrasil@uol.com.br       

quinta-feira, 8 de junho de 2017

DOZE SILÊNCIOS E UMA SOLIDÃO
A matriz, sem soberba, ao contrário, modesta, ao longe, espionando o sereno envolvente se enlaçar carinhoso sobre o casario da vila, atenta à captura da madrugada vestida de zodíaco e encantada de libido, debruçou depois das doze badaladas sobre o azul e se fez por receber novo dia. Ainda absortos, Lecihá e eu, esperávamos o nada se despir para nos dedicarmos ao ócio. Ela, com os lábios escorregadios, mimos tentados, olhos desfilando um aconchego sensual, beijou-me mole, certo aroma suave do vinho, mas meticulosa, enfeitada. Sorrimos! Notei-a, com afeto, a espreitar a porta do fundo, enquanto obrigou-me a acompanhar seus seios arfarem entre a camisola de seda, sem definir se esvaiam sensualidade ou inquietude. A seda foi inspirada pelos chineses para ser desnudada, nunca composta. A seda é o instante em infinito. Nada desvanece mais a fantasia do que a seda despida, mansa. Devaneio em transe. Jamais permitida cair sem sutileza, espaço, sonho, pois é seda.  
Do vazio, daquela direção em que os indefinidos eram mais suspeitos, escorregou uma golfada sistemática e invasiva de ruído, irritante sem dúvida, e permeou entre nós. Adiantou-se o som imprevisto e indesejado com o intuito perverso de quebrar o silêncio a que nos acomodáramos de mãos dadas e lábios irrequietos. Infiltrou-se o barulho camuflado e cabisbaixo pela porta que separava a biblioteca da sala de jantar. Desacomodou, intencionalmente, nossas atenções, afagos, afazeres. Postou-se invasivo entre a garrafa de vinho, o abajur de pé direito alto colorido, rosa, e uma edição da divina comedia entreaberta. Não conseguimos atentar, apesar dos seios de Lecíhá terem retornado ao repouso plácido, libertos da minha insinuação, pois no intervalo nos invadira certa forma estranha de ansiedade alvoroçada pelo ruído forte infiltrando-se saleta adentro. Não haveria razão para tal, visto que o cômodo pelo qual adentrara, ganhava unicamente o jardim das petúnias, onde só chilreavam os canarinhos durante o dia e as tristezas murmuravam em noites de luas cheias ao se amasiarem ali com as serenatas. A angústia, nossa, naquele momento, arrastava consigo um pedaço rústico de medo, envolto numa película de curiosidade. “Não há dúvida”, lamuriou Lecihá, “voltou e teremos de repetir o ritual”. Tomamos da garrafa de vinho, apagamos o abajur e fechamos a divina comédia, embora inconformada.
Ganhamos o jardim, pelo terraço da frente, levando a garrafa e a chave da porta principal. Sentamo-nos no gramado, ao lado do vinho e da solidão. Acompanhamos o ruído atravessar a sala de jantar, ganhar o hall, manter os cômodos no escuro e subir ao nosso quarto para acender a luz da cabeceira. Ali lançou, o ruído, sua sombra tristonha pela janela e cumprimentou a badalada da meia hora do dia começando. Metódico, apagou a luz do abajur e começou a indefinir-se de mãos dadas com o silêncio após descer as escadas. Ao deixarmos o jardim, no escuro, Lecíhá e eu, escutamos o silêncio retornar acomodado à poltrona da biblioteca, após despedir-se do ruído saindo pela porta do jardim das petúnias. Beijamo-nos, enamorados, portas abertas permitindo-nos ver nossas melancolias brincarem entre dois castiçais sobre o piano fechado, mudo, sem ruído. O relógio da matriz perguntou a hora à seda despida.
Ceflorence    01/05/17          email   cflorence.amabrasi@uol.com.br