SONHOS E MELINDRES
Não
deu conta, Liborinho, língua de sesmaria e outras maledicências, se ouvira do vento
do Pequeri, rio ajustado às mandingas e às sombras, corredeiras cascateadas e
piscosas, insinuadas Serra do Quebra Cangalha abaixo, naquela madrugada em que
os vagalumes enfeitavam aos tantos as suas margens, ou se vira derrubar-se
cansado, armar tenda e apascentar cavalo, um romeno aciganado, sem gesturas de louco
ou maldade, fala enviesada, trôpego de verbos, olhar manso com as almas. Foi
neste ritmo que Remorso do Pequeri, corruptela de poucas euforias e viventes,
figurou achego de Giorto Raico. Os conflitos se ouriçaram, a criançada aderiu aos
provérbios, o cachorro entremeou lampeiro para arriscar sobras de quirelas de farnel
ou tristezas e a vida embalou-se em brisa fagueira abeirando às margens,
beijando as matas. A juriti não saiu do ninho, mas nem se intrometeu nos
propósitos, tanto quanto; só assistiu.
Chegou
com o pão quente e o leite gordo a nova. O gentio veio encostando, beira
d’água, soslaio, beiço mordiscado, modéstia fingida, cuspida de lado. Sabia-se
que a primeira investida caberia ao Zeca, vereador, que por tradição perdida
nos antepassados substituiu o pai, Coronel Binho, na política. –“Bom dia, que
mal lhe pergunto, vem de longe, oh moço”?
-“Nem
tanto, cambaio por estas beiras do rio há bons tempos. Só estorvo quando
encontro desatinos sonhados na contra mão do querer a se embaralharem com as
fantasias”. Ruminou o cigano Giorto. O vereador, aparceirado rumando à matriz,
convocou plenária das lideranças para depois da novela, nos meados do pife-pafe,
antes da zona, para os procedentes. Ocorre que o destino, que é mais tinhoso,
deixou Corinha, mulher do vereador, se anteceder aos momentos. Nascera e fora
criada ela, rio acima, em Pedra Velha, local por onde Giorto já havia se
sacramentado habilidoso hipnotizador de sonhos e fantasias. Corinha contou-lhe
que ensimesmava, após acomodar as crianças, pois o marido se alongava no
baralho e outras adversidades fora de casa. Ela se desfazia em pesadelos,
quando sua língua serpenteava enorme e ao tempo em que beijava o Zeca,
enrolava-o, sufocava-o, alternando amor e ódio. Ordenou-lhe o cigano comprar
véu, o mais transparente, com as cores que lembrassem uma cobra coral. À noite,
quando Zeca chegasse, ela deveria usar a meia luz só o véu e imbuída de que era
a própria cobra no cio, recriar enlevos magnéticos, sensuais, em torno da cena,
esparramar o maior número de cartas de baralho pelo infinito e, com a sua
língua sibilina, tentar envolve-lo, fantasmagorias. O cigano entregou-lhe pó afrodisíaco
para ser esverdeado sobre os sonhos, aromatizado em azul pela madrugada, desfolhado
sobre ambos nos orgasmos candentes. Deu-se.
Não
houve tempo de Liborinho consolidar todas as fofocas rastejando do Grupo
Escolar da Dona Melnera ao confessionário do Padre Continho, para serem
espalhadas por dias agitados. No entanto, corria na maçonaria, na casa da
Vaninha, cafetina, até no Boteco do Maneta, que a freguesia e a frequência dos
adjacentes diminuíram de forma graúda em todos os recantos. As afetividades
domésticas se acentuaram vigoradas, progressivas. Com todas as honras, coube ao
Zeca, vereando, criar ONG para tratar de assuntos afetivos. Indicado foi o
cigano para atuar com total liberdade nas controvérsias das afinidades. Corinha
encarregou-se dos véus e das ternuras. A vila acentuou majoritária nos registros
dos nascimentos e batismos por bons verões. Pois!
Ceflorence 12/06/17
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