quarta-feira, 31 de maio de 2017

CATIMBAS DA BOA MORTE.
Creia que da direita da entrada para o balcão, suporte do candeeiro velho fuliginoso, foi caranguejando o aforado da chilena tilintando e rebenque, serventias de peão de bicho xucro. Do balcão, Maneco D’Onça, vendeiro, pouca prosa, que alongara aos cafundós do Mucaé para penitenciar de só matar por serventia, não por profissão, viu, cismou. Era.
Disfarçado nas espreitas, até sorriu o moço das chilenas, pois o punhal atravessado para a canhota mostrava que não era destro e o rosto bexigado da brava escarnava cicatriz feita por faca cravada, que, por deus, poupou o olho. O Sertãozinho parou de ventar para escutar o silêncio. –“Viajando esta hora por destino ou por passagem”-, perguntou Maneco, no aconchego da mão destra e sabida na peixeira embaixo do balcão.
-“Já nem sei dos meus porquês. Venho arrepiando pelos fins dos mundos por conta dos desafetos dos outros. O único nome que atendo é Você, mas não faz falta outro”, respingou o do rebenque. Maneco assuntou. -“Cavalo ajeitado, moço, lembra tropa do lado da Forquilha, já deu vista”? Ouviu -“Andei por disperdidos, mas este animal caiu nas mãos por conta de pagamento justo, vindo de gente vingueira, procurando cabra de profissão de segredo para assentar casos mal resolvidos”.
Maneco aliviou, com a canhota, um quesito, pinga, no copo de Você antes de beber a sua e com a destra amestrou o punhal empertigando para sair da bainha. -“Sossega menino que a noite já vem”, desdisse. Você sondou se Maneco dava conta, de passagem, da Forquilha, falada velha, conhecida.  Maneco atinou de longe os questionados, fingidos, não teria mais fuga. -“Campeei, por demanda de mandados de terceiros, assunto de prosa acabada e que já não interessa a mais ninguém, nem a mim. Houve há muitos acertos que não se deve mexer mais, pela boa saúde de deus”.
Você entendeu o recado, manso, definitivo, aprumou no faz de conta que iria embora e puxou o punhal rápido como vagalume no cio.  Caíram na estrada, deixaram as portas da venda. Você tropica, buraco que D’Onça gingou para ser. Maneco puxa a lâmina, desde o desaforo do bofe de Você, até acarinhá-lo com sua alma e os dois mortarem amasiados.
Respeitosos, truqueiros ajudaram Maneco cavalar Você, finado, sem queixumes, no animal. Anoita, venta. Maneco lambezeu a mulher, beijou as crias, rezou um credo, dormiu amuado, dessabido se desmembrara a alma de Você dos seus pecados do bofe, por carência, profissão ou prazer.     
Ceflorence     16/05/17          email cflorence.ambrasil@uol.com.br    

quarta-feira, 24 de maio de 2017

POR SER EM POESIA - SÁBADO

Escapou de Levício em manobras sutis e delicadas, aportou no Condado de Transbéria, região ao leste das fantasias, mas de difícil acesso ao norte da sensualidade, trazido pelas ninfas de Cambélia, em seguida, tão logo os ventos permitiram, esparramou-se entre as mulheres de mais de seis desejos, embora ainda arrefecidas em relutâncias, e homens obstinados em continências e repressões afetivas, enclausurados, e junto veio a noticia que no Convento de Abiganhã Sefazil, por desatino e inconsequência das deusas do prazer, se introduzira de forma irreverente e dissimulada, em seus caprichosos e protegidos jardins, cuidadosamente semeados em canteiros reprimidos dos inconscientes, fertilizados com estigmas  recolhidas dos pináculos dos censurados, substância incontrolável, melíflua, atrativa.
Detalhes precisos da apavorante substância, classificada pelos monges, ainda pelos anabatistas, só os castos, e confirmadas por competentes videntes em estados de alucinação e pavor, definiam que em circunstâncias especificas se espargida de forma gutural, afetiva, perigosíssima ao pé da orelha, acima do pescoço, fatal, ou lançada contra a corrente dos preconceitos, a matéria delicada, sinistra e excitante, originária dos canteiros de Abiganhã, se apresentaria suavemente afrodisíaca, insinuante, des-preconceituosa. As recomendações de se eliminar todos os vestígios da maligna praga psicológica, como se articularam os movimentos defensores das intransigências e das condenações, eram que dependendo da quantidade, da coloração, da oportunidade no consumo desavisado, sem repressão, a predestinada petulante alienígena se imiscuiria em momentos de silêncios e resguardos, trocando mensagens espirituais, desvirtuando valores e provocando criminosos encantamentos contraditórios, embalados sorrateiramente e substituindo os recatos pelos festins pagãos, orgias, ou outros concílios não recomendáveis aos gentios de boas condutas.
Mas era sábado dos deuses insubordinados. Os caminhos foram se amoldando as restrições e as mulheres de seis desejos e os homens dos claustros castos vestiram suas saudáveis demências de finais de semanas, resguardaram suas angústias nas prateleiras livres das crianças, tomaram seus vinhos antes das aves contornarem os arrecifes onde estavam instaladas as solidões de suas mesas individuais e se procuraram receosos de que as pragas de Abiganhã os obrigassem a se despir dos medos e das nostalgias. O refrão das ninfas foi se acomodando, desmilinguido, costas eretas se desfazendo em olhados, desdizendo em murmurinhos, confidências. As ninfas defloraram sobrados azuis de fugidias meiguices dos jardins de Abiganã entre as mesas. Salpicaram quatorze desejos, sem preconceitos, distribuíram uns cata-ventos despidos de receios e deixaram as sementes das pragas dos conscientes adornando as fantasias das mulheres de seis desejos e dos homens enclausurados.
Dos jardins de Abiganhã as deusas dos prazeres se acomodaram nas suas petulâncias, desmediram irresponsabilidades risonhas e devoraram um imenso raio de solidão que amaldiçoava o Condado de Transbéria. Bebericavam seduções, por serem deusas. Intimaram que por ser sábado as ameaças se realizariam, por ser sábado.          
Ceflorence  15/05/17    email cflrence.amabrasil@uol.com.br

quarta-feira, 17 de maio de 2017

VIADUTO DO CHÁ
Sou atribulado no Viaduto do Chá, tropeço em pensamentos, e converso com a maça indiferente mordiscando-a ao acaso. Pela frequência no trajeto deveria ter abandonado estas obsessões recorrentes, mesmas elucubrações sempre que me pego no meio do percurso. O viaduto divide o mundo em quatro intercorrências metafísicas: o passado, que me persegue, com todo o seu imponderável, o futuro, em forma de mulher, de onde surgem aqueles olhos sobre os quais salpico fantasias inúteis, mas almadas, vestindo as cores exatas do sorriso dos meus sonhos. Os lampejos da moça sempre me hipnotizam, passo a passo, esbanjando as ternuras carinhosamente escolhidas e embaladas na cadência do bamboleio rumo ao infinito. O acaso e a ventura, embora ninguém ponha fé, sempre se desmancham, para a minha alegria, no mesmo mais lindo flerte, saltitando as cores de outra jornada.
À direita, o terceiro viço, entre minhas subjetividades, é carregado pelo vento da história, especula manso, e realimenta fugas mostrando claramente que por ali, no muito antes, transitavam índios, mamelucos e escravos carreando animais carregados de mercadorias, crendices, esperanças, antes de na várzea do Anhangabaú plantar o chá para designar o viaduto. Presto atenção à conversa pachorrenta e descompromissada do tropeiro forte, crioulo, espicaçando a mula, com a cangalha carregada para chegar só aos meus devaneios e perder-se nos meus desajustes.
Por desatinos e outras petulâncias, quando atrevo especular o horizonte imenso à esquerda, que limita com coisa nenhuma, nasce um convite eufórico de saltar prudentemente ao desconhecido. Nada como o viaduto para um simplório, eficiente e gratificante suicídio. Tem sido o lugar preferido de muitos des-abnegados. O impulso, tranquilo, suporta a certeza absoluta de arrojar-me leve com o canto da sereia, para abraçar os pensamentos e os desencontros, sem nenhuma angústia remanescente de arrependimento. Assim flutuaria confiante sobre o nada imaginário, acariciaria minha doce loucura e esvoaçaria nas asas da ansiedade infantilizado em cirandas dodecafônicas e outras mesuras. A morte se desenha nas garatujas do medo com os salpicos da curiosidade. Provérbio de Simião Docato, benzeiro de meus melindres.  Mas a menina veio com a petulância da beleza enfatizando minhas limitações. Nossos olhos, ela disfarçando seus receios e eu os meus intentos de conhecê-la em sustenidos imiscuíram-se sigilosos. As distâncias dos conflitos escondidos em nossas solidões seriam iguais aos destinos das nossas querências? Não achei resposta mesmo vinda de um desatento desconhecido. Os olhos cor de mel, lindos, cadenciaram-se na aproximação afetiva e segura para o destino nos acarinhar embalados nas ilusões e sermos colhidos no futuro pelo sabor do desejo. Nos introjetamos mansos como nostalgia. Por nos cruzarmos não havia tempo e espaço para engodos. Desaparecemos, evaporamo-nos enfeitiçados na brisa dos olhares para não sermos mais do que saudades, no futuro, ao nos darmos, contrariados, as costas.
Corroído pelo anterior, o lampejo afetivo da menina sumiu na tristeza da espera de um talvez que não retornou. O mameluco manso foi engolido pela horrorosa realidade do agora que estraçalha qualquer quimera. O vermelho salpicou de pavor os sonhos alados e nem com o azul mais carinhoso brotou espaço para poder enlouquecer tranquilo como pedira. O suicídio ameno ficou para a outra travessia.
E-mail -  cflorence.amabrasil@uol.com.br                              

sexta-feira, 12 de maio de 2017

ANIMÁLIAS E BARGANHAS
Deus boceja, no acordando das neblinas frias que acalentaram seus sonhos, apanha um copo d’água na bica do córrego para escovar os dentes e chacoalha os ombros do Zezé da Mata para chamá-lo. Zezé ainda no lusco fusca sai à cata da tropa e entre todos Coringa, mangalarga raçado, funga no prevenido dos porvires. Se tramava  barda do Mangalarga, ser encabrestado no largo. Encurralo, no jeitoso habilidoso de Zezé, o animal funga no fingido e os encantos dos dois predestinados se entrelaçam.    
O sol vem invejar os arreamentos por trás da mata. Zezé fecha a porteira e as borboletozuras abrem caminho com os canarinhos da terra, os pintassilgos, os coleirinhas para se pasmarem com cavalo e cavaleiro rompendo destino. No chegando ao jacarandá, aonde o rio encabresta teimoso para o poente, é hora da parelha se aprumar nas composturas dos desacatos, pois a venda do Maneco abre um mar de montarias e peõesadas espatifadas ao dará. O cavalo capricha na urdidura da pisada larga e altaneira e Zezé se agiganta nos consoantes de invejar aqueles que fingem nem invejar. Viram, nos desafios exibidos, só nos pés, para emburricarem entre uma mula ruana e um pampa vistoso. Apear é a arte dos nobres. O rabo-de-tatu é um florete esgrimido com a perfeição dos predestinados apontando os subjetivos indefinidos. Pés no chão são os motes para as intimidades. Cuspir de lado, perguntar pela Rosinha e pelas crianças. O convite para a cachaça é o alerta de que o jogo estava aberto. Daí para frente é só para profissional de regra.
Tiaguinho do Donca apruma-se nos arriscos. -“Zezé, a semana passada você enrabichava a égua baia que eu apanhei dos Monteiros.”
-“Tiaguinho, ando campeando animal manso, até meio lerdo, para uso das crianças. Você sabe, eu mexo com gado mais alongado e preciso de cavalo despachado nestes arremates, para mim.” Consolo fingido, Zezé aceitou a desforra do Tiaguinho para repassar a égua. Bicha ajeitada, mas não podia escapar dos íntimos. Pede volta de duzentos. Tiaguinho chega aos cento e vinte com os arreios. Zezé funga disfarçado, arreio só no caixão. Acertam por cento e cinquenta.
Zezé volta às tramas debruça delongas sobre égua do Genésio tordilha salpicada, pintura. Troca justa. A conversa rola da égua para os obstantes de um burro marchador, alazão, bicho ligeiro e passarinheiro só para peão. Os remates se fazem, depois dos volteios de praxe, na volta dos cem. O sol começa a dar sinal de cansaço. Coringa, atento à hora, relincha nos desvãos. Zezé achega do Honorato, os dentes, mais crioulos, lindos, que a natureza inventou e fecha o cerco. -“Você apanhou o Coringa nos acertos das contadas de hoje. Que tal arrematar uma barganha honesta, para chegar aos entre tantos com o burro marchador, que você sempre arredondou de longe”. O único senão seria se das artimanhas barganheiras não voltar o Coringa para a casa. A criançada chorava e punha Zezé para dormir no cocho do curral. Na volta a porteira range. Guloseimas para a filharada. Rosinha muxoxa de longe: -“E para ela”? Coringa resfolega agradecendo o milho e desfaz-se a harmonia do centauro. Zezé fecha a porta do quarto abraçado à Rosinha. Os conseguintes vieram nove meses depois, quando chora, nos braços da parteira, Sôssó, a candura em forma de chegando.
Ceflorence 04/05/17                email: cflorence.amabrasil@uol.com.br

quarta-feira, 10 de maio de 2017

DEUS ACUDA.
Verão assumido de aguadas boas no Grotão do Rio Pardinho prometendo fartura. Deram-se as rezas, velas de sebo juntadas e acesas preventivas dos desatinos das águas e das enchentes não estorvarem os roçados gordos. Os filhos de Nhonhô do Grotão, traquejados nos sovados das labutas, atiçavam as juntas de bois nas confianças de muito feijão, milho, arroz maturando no varjão no lugar das macegas. Terminado o grosso das tarefas, os moços do Nhonhô, nos troçados e risonhos, ajustaram corretos trejeitos de ir machadando no capricho e arte os arremedos de um tronco de pau já meio imbuído de espantalho para passarada. Cismando até de humano porte, o pau foi assumindo ar zombeteiro de troças tanto como de espantalho para as sortidas roças.  
A artimanha do Neco e do Juca do Nhonhô desvirou meio como gente, ate batizada de Ditonho pela meninada ciscando nas brincadeiras ao redor. Alternavam as roupas coloridas e alegres, punham-no ora pândego, carregando jacás às costas, ora com os baixeiros dos cavalos esvoaçando nos ventos ou com chapéu velho desabado. Barrigudo ou corcunda das palhas enfiadas na camisa ou na calça ficava caprichoso de arrogante. Mas o tempo veio feio aquela quinta-feira madrugando em meados de janeiro. A enchente debochou das margens de rio, vasou nas estradas, apavorou gente. Carregou afogada criação de todo porte e pendurou nas quiçaças. A meninada cedo correu sobre os desastres, salpicou as lamas e chorou a carência do Ditonho sumido nas aguadas.
Dois anos esqueceram as sinas para traçar cismas novas. Coube ao Juca ouvir na venda do Capiló conversa de milagres em Sobradinho das Tapiras, sete léguas rio descendo. Crescia na vila fama das bênçãos certas de um padre, por Orêncio nomeado, graças às forças de imagem antiga, Santo Atílio, que fora salva por pescadores no Rio Pardinho. Davam-se ali assistidas curas, de doença brava, de cego ou de aleijado quando as desgraças eram bentas pelo padre aos pés do santo milagroso. Nhonhô e os filhos, nos propósitos, se aprumaram nas montarias boas para partilharem em Sobradinho do santo, da festa, da vida, da fé.
Apeados, chapéus nas mãos, chegados; fila preguiçosa, longa calada, pia, romeiros. Foram se arribando sisudos Nhonhô e os meninos ao altar; sala miúda, capela simples, silêncio. Neco, ouriçado, o primeiro a defrontar o santo, gritou – “Pai, pai é o Ditonho pai, deus acuda pai”!
Ceflorence  24/04/17             email   cflorence.amabrasi@uol.com.br