segunda-feira, 27 de abril de 2020


FANGAS - OLÓCIOS E O CÍRCULO INDEFINIDO DE ÁRIES

            A vida se fazia exatamente sonolenta, azul, metódica. Dias longos assistidos cuidadosamente pelas artimanhas das aranhas entrelaçando paredes, escondendo seus silêncios para adornarem os tetos tecendo motivos, melodias. Dava-se existir em passarinhos cantando, jabuticabas amadurecendo, o sol filtrando sensual entre as teias e invadindo pela claraboia.
Raios tais, em sendo sim, eram então véus singelos, tão puros, transvestidos e brincando com a brisa gostosa disfarçada pelas janelas largas. Assim como era o tempo então do ser em ser e só se fazia assim, o ser, porque tudo era muito assim para ser. Refaço este passado, pois não sabia parar, ele, passado, para se presentear e depois se fazer para intentar o futuro o mesmo.
Tal sonhava, eu, e pedia, muito, muito mesmo, para nada mudar e não arruinar os intentos. Era o medo de tudo se acabar para sempre sem eu mais poder beijar os segredos, fantasias, as ilusões. Pelos derredores eram não mais do que preguiças morosas, acomodadas em ruídos macios, abeirando para uns confins dos infinitivos que divisavam com os fundos do pomar do sobrado para depois ganharem os aléns. De então, para os desconhecidos, moravam os medos medonhos que me diziam não cruzar, embora, naquelas pontas, crescessem juntadas de parcerias umas melancolias sem serventia, segundo os antigos, mas não prosperavam ou eram agressivas quando eu chegava bem perto.
Nós ali da morada, desde criança, sentíamos pelos meandros, entre as tábuas largas furadas, sonhos e portais, um sabor doce de delírio com ambrosia, disperso em aconchegos e, se tanto, ao entorno, pois minha avó borrifava, aos pouquinhos, suas mezinhas e benções, no andado lento, arrastado sobre a sabedoria, ensinando o futuro a esperar, pois o presente estava lerdo, enquanto ela alimentava os pássaros, imaginações e dispersava salpicados sorrisos, muito seus, para os apropriados e os momentos.
Domesticadas e silenciosas se acomodavam duas ratazanas em tempo de aposentadoria vagando entre a dispensa, o pretérito imperfeito, uma rosa murcha esquecida no vazo da sala de jantar, os almanaques e livros carunchados e indicávamos ali como biblioteca. Neste envolto medievo abarrotado de prateleiras desordenadas, paradoxos existenciais exóticos amontoados, entre as obras esfacelando, Guanduxo, irmão mais velho de minha avó, esquecido de quando cometera noventa, imitava ler Ilíada, Divina Comédia, a Bíblia, Gregório de Matos, Odisseia, Vieira, os Lusíadas, ou tantos mais, enquanto ensaiava os graves profundos do Fígaro, na cadeira de balanço, para estrear, como afirmava, no Cine Teatro Avenida, que fora demolido há quarenta e nove anos, quando Maria Callas viesse a Esplendor de Mocaçau. Assim era, foi, se foi.
O fantástico e o mágico me corrompiam pelas sombras, contornos e recantos do sobrado centenário onde nos acomodávamos, nascera eu sem até então não arredar o pé e onde gerações se perdiam na memória e na história. Circulava eu pelas paredes, divagados, quadros, poesias, cristaleiras, rangidos, escarradeiras, recantos, medos, encantado com os infinitos sem entender as formas. Rodava por todo ali, em ritmo de complacências e encantos, pelos cômodos, corredores, salas e quartos, puxando um carrinho de rolimã entulhado de bijuterias eloquentes, novidades inimagináveis e ruídos vermelhos, como ela mesma, minha Tia Ancinha, bem descrevia e, convicta, exibia com seu sorriso ingênuo e afetuoso aos fantasmas dos antepassados, seus afetos e protegidos. Resguardava cuidadosamente suas formigas cortadeiras, delicadas, que a acompanhavam pelos cômodos para sugarem, miúdas, de suas mãos os açúcares e doces em calda que lhes oferecia.
Com voz macia as levava Tia Ancinha, no caindo da tarde, para dormirem no alpendre da frente, pois de madrugada se aprontavam, com pontualidade, para atender seu pedido de acordar o sol. Depois que as formigas estavam recolhidas, acomodava os velhos defuntos acarinhados em suas camas e lhes contava estórias infantis para que dormissem tranquilos. Acordava muito cedo e carregava desde então ao ombro a maritaca Remi que aprendera a solfejar em escala de sol e latir como o Capió. Titia se orgulhava de contar até dezessete, suficientes algarismos para saber os números de quartos por onde tresandava o dia todo. Vestia ela um roupão folgado costurado de sacos velhos de adubo emendados com as marcas desbotadas e sandálias de dedos estraçalhadas.
Frequentada em plena vida de alegoria por almas de todos os mantras e cantigas, cozinheira, saudades, arrumadeira, linda, lavadeira, às vezes, convidados, cachorros, bernes, criança, fungando, pescador, mentira, cantador, violeiros, catiras, pois era exatamente ali, neste torvelinho e fé, que se fazia a vida entre a cozinha e o alpendre enormes. Todos voltados em torno das gaiolas penduradas dos passarinhos que filtravam suas melodias para se dizerem canarinhos, cúrios, coleirinhas, azulão, trinca ferros e se davam os demais. Achegavam gentios vários de longas sinas e motivos, conversas de lero-leros sempre, estendidos por aquele aconchego de contos de fadas. O mundo, os embalos, imprevistos e demais inevitáveis preciosos sabores de delírios com tons pueris ocorriam ali, sorriam, faziam-se naquele quadrilátero de magia e sonho. Minha avó atendia a todos na imensidão da sua igualdade e serventia que Deus lhe dera.
Marcava-se imponente e misterioso, protegido pelas preces e afirmações de minha avó, Somésia (Somezinha), Tramaia Alcalunga Dicema, quedando no fim do corredor, a cobrir uma janela inútil, ao lado dos dois últimos quartos, o armário dos impenetráveis e dos interditos onde ela guardava seus sonhos e ilusões para com eles cobrir e proteger as armas, espada e a farda cor de quebranto com almíscar, que seu marido, meu falecido avô, Albargádio Tomasínio Alcalunga Dicema se instrumentara para o inevitável. Fora assim que se preparara ele para assumir, como generalíssimo, a frente do Corpo da Guarda Monarquista de Esplendor do Macaçau. O movimento pretendia destituir todas as autoridades locais, prefeito, juiz de direito, delegado, antes de enviar telegramas definitivos, claros, e expressos aos demais revolucionários patriotas aquartelados nos municípios vizinhos e a beira do Rio Pitomba e cada qual assumindo brava e autoritariamente os comandos locais, para juntos, sob as estratégias definidas por meu avô, navegariam em águas agitadas e corredeiras perigosas, rio acima, até à capital e onde reporiam a realeza chegando do exterior. O movimento frustrou-se, pois fora marcado para o dia vinte e nove de fevereiro em ano que não era bissexto, os revolucionários arregimentados pelo avô Albargádio foram maliciosamente convidados pelos prefeitos republicanos das comunidades para celebrarem juntos o carnaval na sede da Comarca de Ponhatã de Cima.
Todos se embriagaram. O veleiro que transportaria os imperialistas fora requisitado pelo Rei Momo, que recebera a chave da comarca como símbolo dos festejos, e confiscara carnavalescamente a embarcação para transportar a banda de Ponteio da Pedra Velha. Mas ainda para reforçar e deprimir a malograda intentona, os herdeiros da monarquia, descendentes da família lusitana, que já estavam no país, não foram avisados do movimento, não tinham a menor vontade de se envolverem e menos ainda em época de carnaval. Sobraram do movimento o inusitado, o imenso amor de minha avó pelo marido e um aroma debalde do propósito que a nobreza e a aristocracia bateram à porta do sobrado, mas o destino fora cruel.
Guardava vovó, a sete chaves, no mesmo armário fantástico, junto com os sonhos, armas, fardas e dragões monarquistas do vovô, um farnel incontável de utensílios dela para exercer, com muito êxito e ciência, as suas premunições, benções, oratórias, quebrantos e rezas respeitadas por todos em Esplendor de Macaçau e redondezas. Ordenadas em pequenas caixas talhadas com símbolos exotéricos dos rituais e magias, infalíveis, seguiam as peças mediúnicas para celebração dos imprevistos, lupa de enxergar o além, concha de recolher o etéreo e o difuso do fundo do copo com café amanhecido, repousado, virado para o lado da lua cheia em janela do leste do oratório.
Detinha ela na solidão do móvel, sementes e seixos de tamanhos, cores e formas diversas para com eles sentir os tatos e o refluxo dos eventuais, das arbitrariedades, desafetos, angústias, das paixões. Eram estes seus inúmeros tarôs, de origens incontáveis, seus poderes divinos, que só ela traduzia com os olhos vidrados nos imponderáveis e nos inconscientes.
Águas, óleos, pós, misturas efusões das profundezas, abençoadas, exotéricas, poderosas nas curas das malignidades físicas e emocionais, que ela prescrevia com exatidão, crença e resultados. Mantinha ainda no armário um talismã de apalpar o cheiro e o sabor da vida, a definição do sexo a vir à luz, prever doenças a caminho, cataclismo, morte, traição. Patacas antigas a serem apontadas pelos consulentes e só assim nos seus apalpados se tornariam infalíveis para as revelações de vidas eternas, saúde, quebranto, alertas contra desencantos e maus olhados. Pendurados nas portas se colhiam todos os tipos e formas de compassos, triângulos, réguas comuns ou numeradas, heterodoxas, todas entronizadas, santificadas, demoníacas para traçar a exatidão dos horóscopos e dos destinos. Protegidos pelos espíritos de todos os santos e orixás, quedavam os baralhos específicos para responderem, sem titubeios, pelas flutuações do cosmos, das colheitas, para atender moças virgens, semi-virgens, viúvas, as más casadas, traídas, que corneavam. Os baralhos não poderiam jamais ser trocados ou invertidos em seus usos próprios para que os confrontos, fins, astros, fortuna, imponderáveis, não se confundissem e misturassem as almas atendidas. As secções particulares de vovó Somezinha só eram feitas em dias de sol, a partir da madrugada e quando a brisa do noroeste trouxesse o beijo e as benções do Senhor. Caso não houvesse o clima de exaltação, as magias tresandavam. Trajava ela branco para atender até às onze horas, quando o galo índio do fundo do quintal, pontualmente, a avisava do dia sido.
Na prateleira mais alta do mesmo armário enorme de Pinho de Riga, com a sua ripa preta estreita de óleo pregada do alto ao chão, como símbolo eterno do luto, desde que meu avô morrera, guardava vovó os licores de pequi, jabuticaba, framboesa, tangerina de produção de muitos anos que ninguém mais se arriscava. Restavam nesta mesma tábua do móvel descomunal, os cordéis e tarôs para lerem-se os destinos só dos homens, dos animais de estimação e as volubilidades das chuvas e secas. Por último, com o maior carinho e precaução, encontrava-se o vestido com que se casara Vovó Somezinha depois que fugira com Vovô Albargádio de Abadia dos Menestréis, deixando no altar o noivo a que fora prometida pelo pai e que jurou vingança antes de se suicidar. Cavalgaram dezoito horas, três trocas urdidas no correto do manejo e raça das providências pelo avô, animalada soberba de desenvoltura e fidalguia, ajustando as marchas mais pelas aguadas, mor não deixarem rastreados para as catas dos que vinham no encalço e se deram em ser de corpos e almas, desmilinguidos, em Esplendor do Mocaçau. Não era ali então não mais do que um pouso carecido e pobre de muladeiro e jagunço a beira rio. O vestido era estendido ao sol em cerimônia semanal, depois de passado com muito esmero a ferro em brasa, antes de vovó vesti-lo e exibi-lo a todos nós, inclusive aos cães, às invejas, pássaros, formigas e aos segredos, por não mais do que quinze minutos e devolvido ao armário dos incontáveis e dos sonhos.
Mas o que mais me atraia e queria contar agora nesta prosa de beira de fogão de lenha, nesta hora de acarinhar serão, seria sobre duas famílias de fangas e olócios, vindos de um silêncio dodecafônico desconhecido, como garantiu minha tia, e que chegaram entre o repicar do sino da matriz e uma chuva forte de verão que estragou muita lavoura e carregou, beijou o pé da igreja e um eito baita de criação de Esplendor de Macaçau. Passaram a habitar eles o sótão do sobrado, no começo, em total surdina, sem mesmo nos darmos conta, mas com o tempo foram se assenhoreando dos ventos das cumeeiras, dos pensamentos que andavam soltos pelos corredores, ficaram íntimos das aranhas tecendo suas artimanhas, sentiam o perfume das formigas cortadeiras lambendo os doces, definiam os dias pelos cantos dos pássaros que não chocavam no inverno, se encantavam com os sorrisos das visitas para alimentarem seus filhos, brincavam com os ruídos azuis das nostalgias que se escondiam pelos verdes da solidão e, ainda, pelos ......
Bom, vamos apagar o fogo jogando o café requentado e o restado se proseia em outro talvez, pois a noite alongou, as formigas querem acordar o sol e Tia Aninha começará sua ronda interminável. Tio Guanduxo já está entoando seus graves baixos na biblioteca enquanto Maria Callas não chega. O sono apontou e fica para o depois, outro dia mesmo, pois as tramas das fangas e dos Olócios, que dei conta de agadanhar espantado, muito criança eu, no sobrado da Vó Somezinha, ainda me comovem e excitam demasiado.
Ceflorence     São Paulo – 24/04/20    email  cflorence.amabrasil@uol.com.br


segunda-feira, 13 de abril de 2020


DESAFEITAS EM ALQUIMIAS DE EROS E TANATOS
 
            Caíra eu em depressão profunda face às medidas tomadas de reclusão pela invasão dos vírus, políticos, economistas e anões da sonolenta Branca de Neve. Mesmo se fez assim o último outono em Antraçós das Benções, entre pintassilgos, melancolia, inclusa nostalgias, sim, abrindo diariamente as cortinas dos invisíveis para nos pormos a saudar nada menos do que o inelutável, micro infinitesimais, famigerados diluídos no abstrato. Os movimentos eram lerdos, mas nada desmentia o refrão medieval: “uma centopeia não faz verão”; com isto as andorinhas se sentiram ultrajadas. Vesti máscara, chapéu verde oliva, empunhei jornal, com polêmica manchete: fecha, abre ou o bicho pega, assumi as sandálias havaianas e fui proibido de ir à praia ou conversar com o além. Não havia inclusive confronto entre a metamorfose do absurdo e as pequenas soluções das premonições confirmadas sobre a influência do paradoxo, tanto que as brisas contornavam as meditações não permitindo às flores restantes encantarem os sorrisos. Entre o delírio e a loucura não se conseguia introduzir mais do que um nada. O desespero assumiu o tempo e o verbo. Seria a primeira secção de psicanálise com o doutor Aracácio e não poderia deixar de estar com fome, ansioso, sentindo odor de curiosidade e com premonição de que no final da tarde sentiria falta do guarda-chuva, pois o sino da capela avisou que a missa das seis seria professada em mandarim por Dom Keioshan pelo féretro de sete contaminados em sequência e destino.
            Notei, caminhando para o consultório, que os jardins ainda eram muito dependentes por serem da infância. Adentrei pela ótica minimalista sem grande entusiasmo. Saudações ofegantes, discretas. O psiquiatra ordenou-me deitar no canapé e debulhar livremente meus delírios existenciais. Livre pensamento. Obedeci. Existia uma atmosfera de romantismo pueril entre as samambaias deprimidas e as crianças aguardando a hora de recolher pela pandemia. À distância, provável até pela sutileza delicada da neblina indefinida, a mera imaginação não parecia senão relutante silhueta de metáfora a procura de sua poesia. Nos escombros do gerúndio, em que cirandava naquele final de outono a imaginação, confirmou-se a expectativa antiga do vácuo existencial entre a angústia e o conteúdo da melodia dos menestréis compondo as sinfonias dos adventos prováveis, que propõem ser a existência que antecipa a essência para criar o nada, segundo os existencialistas. Com isto descrito, relacionei com o vírus começando a se impor a todos os gostos, gestos, paladares. As ruas se esvaziaram ao se ouvirem os sons retumbantes dos invisíveis com os dentes trincados mastigando o pavor. Pairava, sem preconceito algum, nítido sabor hermafrodito da metamorfose transformando o acanhado silogismo em petulância por ser a liberdade proveniente da angústia. Escutei o psiquiatra coçar o subjetivo ou anotar algo sobre uma folha azul pelo aroma de lua nova dos raios de sol transcendendo as venezianas, as fantasias e os bafos invisíveis dos vírus. Dei a devida distância e retruquei que os dados levantados, segundo autoridade do assunto, pelo sequenciamento da ilusão de ótica, poder-se-iam estabelecer a correlação, indiscutível, entre a menopausa e a síndrome psicológica do afro-lagartixa. Amedrontei-me com o ruído similar ao silêncio tentando ultrapassar a porta do fundo em função das meras equações do segundo grau se recusarem a estabelecer correlações com as escalas dodecafônicas e o assim o vírus poderia ser intransigente. Retornei à infância, lacrimei envergonhado, e atribui o inexplicável ao complexo de Édipo. Não pude atinar se o doutor chegou a entender exatamente o que eu transmitira, mas não havia condições de repetir, pois a sensação de que tirara ele os sapatos, como preferem estes profissionais para verificarem onde estariam os atos falhos ou as censuras, fora indeterminada.
            Enquanto tal, poderia se observar claramente que os jornalistas e as madressilvas procuravam suas razões e preconceitos entre uns papeis rasgados que o almoxarife deixara antes de ir ao cemitério na quarta feira. O psicanalista virou a folha do bloco para a página verde em que são anotados casos pessoais, endereço da namorada, receitas culinárias, informações em sânscrito dos analisados mais esquizofrênicos, melhores safras de vinho. Em seguida tossiu, discretamente, sugerindo, captei, com argúcia, pela entonação da sua mensagem para não ser tão enfático nos assentos graves e intempestivo, eu, nas vírgulas entre o sujeito, o predicado e o objeto indireto.   Não pude deixar de me reportar à borboleta Viléia, mais afeiçoada ao verbo intransitivo, exatamente quando no confronto da pandemia com as decisões de investimento nas bolsas, circunscreveu uma hipérbole original resultando em graciosa parábola ecumênica do entretenimento entre animais imaginários, figuras abstratas, mensagens de pêsames, remédios hermafroditas, orações poderosas. Desta forma intransigente, as formulações consistentes foram aproveitadas pelas crianças saindo repentinamente do Sétimo Sermão de Isaias, Capítulo dos Abstratos e se puseram a saltar amarelinha antes de levarem estas informações fundamentais como trabalho de casa sobre o imprevisível. Lembrei-me, pelo em tendo sido minha infância, que as melhores jabuticabas do outono são as colhidas entre as latitudes boreais e oitava de Beethoven. O único aparte, até então do casmurro médico, foi de que ele preferia a quinta. Pela plasticidade das circunstâncias, sabores das jabuticabas ao tempo, pavor dos invasores, revoadas das aves e da angústia, lembrei Van Gogh retratando o belo com o caos dos seus devaneios. Pousou em surdina em meu além vagando, um som com perfume de fim de dia e tive uma sensação de suicídio ou vontade de beliscar os croissants da Maria Antonieta. Os vírus cairiam, supus, com entardecer e durante as discussões inúteis, repeti ao abismado doutor que imaginara um enorme abstrato de esperança azul, antes de deixar onde estava em transe sobre o canapé cruel, escolheria um solitário banco de jardim e verificaria se seriam horas adequadas para um aperitivo ou a senhorita que passaria mascarada deveria se dirigir em português ou em libras para pedir, desesperada, ao taxi que a levasse para um horizonte sem limites ou a um refúgio desabitado. Descrevi com precisão que uma imensidão cinza fosca envolvera Antraçós das Benções e fomos todos nos diluindo em eu’s - (o psiquiatra corrigiu para egos) - assimétricos e disformes, nos desfazendo dos nossos corpos, almas, por findos intransitáveis, entrelaçando deformidades geométricas, muito irregulares e com seus ângulos indefinidos, nos transformávamos em sabores de absurdo, cheiros de pavor, sensos de incompetências, olhares de inacabados, acenos da morte. Desencarnei então em fá sustenido e pesadelo sobre o canapé, por tempo indefinido, mas foi como apalpei desesperado o nada e me pus a não existir em sendo.
            Acredito que o psicanalista e eu dormitamos neste intervalo de transe, tanto que fomos surpreendidos pelo forte ruído do bloco de papel e peso abrutalhado das anotações caindo no chão. Ele pigarreou sisudo em voz cavernosa que uma hora analítica se fizera. Senti uma fervura de delírio borbulhando entre o passado e o futuro sem o presente solucionar ou comparecer. Metrificamo-nos de tão longe que nossos inconscientes se depauperaram em solidões. Não nos abstivemos, mesmo assim, da sensação clara do vírus intentando imiscuir-se com suas garras sádicas pelas nossas insondáveis demências apavoradas, regurgitando o mistério, o insondável, a intimidade das próprias ignorâncias e por último os pavores que transvestíamos.
            Invadindo, pelo inexplicável entranhado, nos demos um forte jamais, distantes o mais possível, e até o infinito, se houvesse.

Ceflorence      11/04/20        e-mail  cflorence.amabrasil@uol.com.br