quarta-feira, 25 de maio de 2016

LABIRINTOS

Realmente, para configurar os antecedentes, na tentativa de garimpar na bateia dos desesperos, separando o bem do mal, como demandam as divindades e os astros que bolinam razões, segundo dizem as videntes e os curas, quando tracejam os imperativos da vida, a verdade deveria ser exposta logo de início, constatando que nem mesmo Gerpásio Alvado lembraria quando começaram os seus desassossegos. Um alvoroço de azucrinados, sem sentimentos, envelheceram, na adega do infortúnio, irados ventos que lhe entupiram a boca com agonia, para que jamais a desgraça o abandonasse. Deveria já se prever, nestes contornos confusos, que os tempos estavam semeando pesadelos e não seria especulação prognosticar, com segurança, que a safra de tristeza seria farta em carência durante a vida de Gerpásio. Só os escolhidos pela melancolia escutam o silêncio e pressentem as tormentas. Gerpásio, entre os desafortunados do gênero, se arrastou do ventre materno, marcado a brasa pelo signo da angústia e da depressão.
Trazia assim da infância este dom que lhe contorcia a alma, sem meandros ou complacências, igual às serpentes preparadas para a sofreguidão do bote sobre as presas indefesas. Em incontáveis tentativas, jamais conseguiu ele cambiar a alma nem no varejo e muito menos no atacado.  O saber convencional sonha que o imaginário se traça por linhas retas, por horizontes abertos e por perspectivas claras. A realidade dura do raciocínio, Gerpásio a sente na pele como urticária: é que as linhas retas, os horizontes abertos e as perspectivas claras fogem desarvorados e sem rumo pelos meandros confusos, indecifráveis e inconscientes dos labirintos emocionais dos desafortunados como ele.
Foi neste fogo existencial e com cores paranoicas, entre as suas quatro paredes e os seus pensamentos agitados, que Gerpásio deu com o teto do quarto, sem tempo sequer de afagar a frieira coçando, pois o dia se apresentava pelas frestas das janelas, sem deixar alternativa de fuga pelo sono. No tormento, deixou-se arrastar impotente, castigado pela sensação de que seria uma vez mais devorado pelo contumaz absurdo rabugento, deitado e acomodado, sem permissão, ao seu lado da cama. Indefeso, abandonou Gerpásio o próprio raciocínio à sorte do vagueado e do labirinto intrincado, entregando-se a solidão e a angústia. Impotente para levantar-se debruçou sobre o irremediável e se deixou atormentar pelos escaninhos tortuosos da opressão.
            Estendeu as mãos sobre o criado-mudo a cata do cigarro. Com a caixa de fósforos veio grudada uma censura pedante e cínica, fruto caprichoso da promessa que assumira consigo para largar o vício, em função da taquicardia, do estresse e da publicidade. Pela parede, ao lado da janela, desceu uma ansiedade solerte, que se amasiou fagueira nos ombros largos do absurdo, já refestelado na cama estreita. A ansiedade não abriu a boca, mas jogava laivos intermitentes e persecutórios, apagando os últimos resquícios das marcas dos rastros que caíram pelo próprio labirinto, pela trilha que Gerpázio pretendia escapar. Sem as pegadas fugidias pelos desvãos do próprio devaneio, Gerpásio foi contornando as paredes rugosas do isolamento escalavrado do labirinto emocional. A falta de solução foi se tornando pegajosa e intransponível, à medida que a cama apertada recebia, em farrapos desordenados e provocantes, novos sofrimentos, depressões e medos.
            O labirinto afunilava e as mãos retesadas de Gerpásio tentaram conter as suas bordas. Uma amarga impotência abre enorme fosso entre a realidade e a esperança. A escuridão começou a se agigantar, vomitando, pelos meandros do insensato, o pavor, a aflição, a agonia. Espalhavam estas penúrias seus tentáculos lúgubres paridos nas entranhas inerentes do labirinto involuntário, que Gerpásio criara e não controlava. O absurdo inconsciente é surdo a qualquer lamento. Gerpásio tenta consultar a razão que se esconde no mesmo bueiro do labirinto por onde escorrem perdidas, a vontade, a estima e o amor.
            As paredes se calam e Gerpásio se contorce em lágrimas: reflexo da última tentativa ao ouvir seu desespero mudo gritar ao próprio labirinto que o perdoe das incongruências que não sabe como criou. O labirinto se fecha sobre a derradeira réstia de razão para deixar a loucura assumir o papel principal. Os panos se fecham para a demência beijar o paradoxo.      
Ceflorence       email amabrasil@uol.com.br               

quinta-feira, 19 de maio de 2016

DOS DESTEMPEROS E DESASSOMBROS
            Sabia e sabia de tal qual chover, o tempo destemperado, mercês das pragas desaforadas dos desacordos entre deus e o adágio, segundo o evangelho de satanás, que o mundo se derretia em voçorocas graúdas, a lama se perdia nas enxurradas grossas, carreadas para o Tapajoára, cortador rio dos cerrados, das rimas, dos poemas e das saudades. O vento intendia, ouriçado, de desmanchar o intuito dos passarinhos cantarem para des-brincarem de silêncio. Do jeito dos andados, até o mar, na foz da boca do Tabajoára, viraria brejão dos infinitos, para atolar veleiro, saracura, inveja e carroça, segundo Jatobinho Pescador, quando lançava a rede certeira e ela engastalhava nas quiçaças. E na fartura d¹água tanta não remediava pedir provimentos aos aléns, acender vela, medir encarrilhada dúzia e tostão  de reza preventivas, das repetidas por Vó Geninha Romão. Benéficas preces serviçais e cumpridoras nas tarefas de estancar corisco eriçado. Menos progredia proveitoso atiçar sal grosso na taipa do braseiro, enrolado em melão seco de são-joão, bento na certeza da fé cumprida, desde Ramos, pendurado para resguardo das intempéries no fumeiro e amarrado por embira de taboa da Lagoinha do Pererê para esfumaçar exu gonzo, nas ajudas de des-chuvar, como definia carinhosa e beata Babá Miombá do Apucaré.
Insolúvel de ajustar, o chão apodrecia sem sustento de parar em pé quem destemia andarilhar calçado nas bibocas encharcadas. Só dedão graúdo encravado, curto, no sovaco do barro, aprumava postura. Assim mesmo no palmilhado de jaboti curioso e cuidado de cobra no cio. No tormento, se punham os povos, única querência de atiçar fora das casas, por compra de muita carência faltada, comida, pinga, fumo, farmácia do Tio Zefato, reza na capela, se promessa vencida, ou pagar pensão da manteúda na zona, antes que a moça viesse buscar em lugares inconvenientes. E sabia tanta água, que Clotário Romão desaturdia entre amaldiçoar o tempo ou pedir ajuda aos santos já desacorçoados de tantos préstimos. Acabrunhava perdão, tudo, e corria enxurrada no ponto justo de esconder atrás do silêncio o canto da seriema campeando o parceiro na capoeira; triste encanto, seriema e canto, se sumiam no infinito; “oh-deus acuda”, mas nem isto se dava de amparar das tempestades. Verão quente, bravo, voltava nas comparações, como há muito não se dizia ter sido em Pouso do Cariampó. Pois foi e era. De tanta borraceira, agrura, calor, solidão, as brotoejas avermelhavam, alargavam inchadas, parindo medo de a pele desamarrar do corpo e o vento arrastá-la na lama. Nunca Tio Zefato, boticário, vendera tanto emplastro, Mezinha Santa Pia, em sua vida. As lamúrias eram desfeitas e mostradas, às claras, nas missas, nas bodegas resmungando angústia e mágoa. Trocavam-se assim, no varejo, por moeda de bom metal e ao par, lamentos por minuto de ouvido e atenção disponíveis. O propósito consolava e despercebia por uns esquecimentos de dias, até voltar e a vida, retomar desajustada. Coçar as perebas escalavrava, como se urtiga fosse e tivesse roçado no despropósito, desprevenido.
Se fez, fazia, foi, contadinho como se pôs. As ânsias lacrimavam os olhos, derrubando gotas grossas sobre o barro. Então a amargura gorda, desconjurada, entranhava no barro chorado, fundia bolotas que as águas não derretiam. Festa, a gurizada fartava no gude, no estilingue, nas patas dos cavalos tropicando nas pelotas jogadas nos propósitos. No indefinido, os passarinhos, pombas e gambás, sem terem nem mais onde alongar da umidade, enfurnavam pelas chaminés, aninhando mesmo por ali. Só bambu comprido, com querosene, creolina e pó-de-mico, enfiado pelos buracos para enxotá-los e assim os ninhos entupindo não enfumaçarem as casas. Nas vielas da corruptela, então, algazarras, risadas e deboches, depois dos tombos das montarias, dos que se diziam peões, tropicando nas pelotas arredondadas, de lama e lágrimas, lançadas pela criançada.
Católicos só saiam à rua com terço ou breviário, protestantes com quitação dos dízimos, devotos de Oxum com arrudas preventivas nas orelhas. Agnósticos indefinidos, palitando dúvidas eternas, purgavam, por seguro e medo preventivo, portando, disfarçados, uma figa, um amuleto e, na falta, quebranto dos despropositados, escrito no avesso da folha dobrada de sucupira, por Mãezinha do Cajimó, acatada benzedeira e vidente, conhecida rio acima e rio abaixo, pelas margens então vazando grossas do Tapajoára, roncando enchente. Acanhado, era o perfil moroso do rio, escorrendo mole e quieto para beijar o mar e carregando, pesado, as saudades dos agarrados às tristezas de Cariampó. Os aficionados dos indefinidos garantiam ser de soberba valia, na porventura, as mandingas promitentes de Mãezinha.
Clotário ouviu do canto da coruja estalar o teto e despencar ninhos das pombas com seus filhotes e piolhos sobre a taipa amargurada. Os fantasmas dos Romão amarrados pelas teias de aranhas se desprenderam dos forros do sobrado e das angústias de Clotário e se puseram ao léu vendo dois centenários de conflitos rolarem pelas enxurradas. ( Parte de algo a mais em gestação)  

Ceflorence  11/05/16    email    cflorence.amabrasil@uol.com.br

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Pouso de Cariampó
 Muito repetido, sempre, a morte de Adalpígio Romão se deu durante baile e em disputa por uma cigana, dita romena de nascença e manejo, quinze anos, trazida em euforias medievas, pompas requintadas e bem instruídas, para provocar ansiedades em Pouso de Cariampó. Despertou destraves respeitosos devidos por se dispor, a moça, tímida, subir as águas mansas do Tabajoára, rio dos poemas e das rimas, desde a foz em Botiguará-Mirim, e chegar ao destino cavalgando potro marchador, arreado para andar menina, de banda só, em silhão cravejado de invejas. E tudo nos propósitos para preservar virgindade da vaza de baixo e de beijo na boca, de cima, como prometia Zulvira, respeitada cafetina. A prenda despertou disputas e invejas das águas do Tapajoára, às serras do Quebra Cangalha.
A primeira noite de anseios teria de ser memorável para atrair pretendentes e finalizar com o zangão das euforias. Na vastidão do cerrado, o mimo se deu conta e o vento esparramou boatos para ninguém deixar de vir ao baile arvorado de encantos, para o acasalamento da defloração, com dueto singelo de pianola e violino. A bebida dobrou de preço, aumentaram os lampiões, provocando, incitando, ostentando desejos, luxúrias. O bacará do pôquer, jogatina tramada no imaginário fértil de Zulvira, para a noite de núpcias, abriu esquentado com mais de setenta apregoados. Mas nada como o tempo para sanar os propósitos. A tertúlia das apostas foi descarnando raso, pelas bordas sociais e financeiras, os menos providos e prevenidos, na proporção que o arremate alçava e o sonho evaporava.
Na rinha das oferendas só profissional de paixão e abastança ficou no rolar das apostas. O baralho murmurava baixo e os repiques falavam alto. Derradeiro, no tablado para os chamegos ciganos, virgem, sobrou, além de Adalpígio, o Capitão Pelário Caveta Sobros, impecável, ostentando sua farda nova, encomendada para o momento. Linho azul marinho importado, lapelas douradas bordadas, capricho indiscutível, imponente e sisudo, apalpando o bigode e os cabelos engomados. A gala ousada se justificava para ostentar a patente de capitão da guarda nacional de pronto adquirida da recente república revolucionária proclamada em substituição à monarquia decadente deposta e a extinção do trabalho escravo. Veio o último lance, madrugada, duas horas. O Capitão, impecável, altivo e seguro, recebeu a carta para fechar seu jogo, exposta por Zulvira, firme e insinuante na boleia dos acontecimentos; requintes, suspenses, interjeições. Do outro lado, como fazia sempre nos arriscados, fosse de baralho, roleta, carreiras de cavalos ou brigas de galos, Adalpígio estirou os regaços dos anseios, pediu prudência a si mesmo, escutou os palpites e as juras das certezas e das dúvidas insinuadas nas beiradas transparentes da lua crescente. Ali nunca mariscou mentira da parceira mimosa, “lua, lua ilumine”. Consultou solidão, Adalpígio, com a vista dispersa ainda no cosmos e na porventura. Indeciso, sem premonitório, cuspiu de lado e se deu por indeterminado de procedência. Amealhou, de soslaio, tocaiado no portanto preferido, lado que conversava com o além, lambeu fé no desaforo do destino, devaneou confiança nos astros, beijou o crucifixo que a mulher lhe dera na quermesse de São Jerônimo, padroeiro de sua família e em nome de quem foi crismado muito fervoroso. Coçou os testículos com a canhota, por ser sexta feira das almas sem ventura, assobiou um minueto improvisado em ré menor e, quando ameaçou postura de comandar vir carta, achou melhor prudência de pedir tempo para urinar e, no incisivo de destravar solução, saiu. No pé do maracujá, bonito, desaguou longo, como carecia o imaginário e a atenção. O maracujá, amigo de muitas luas, aquiesceu da demanda, derrubou manhoso sobre o ombro de Adalpigio a última flor desabrochada, roxa, brincando de ir se branqueando nas pontas. Era a vaza que Adalpígio esperava. Mordeu firme o cabo do maracujá, flor, riu deboche, boca travada na oferta. O fado assentara destino, sem torneios ou dúvidas, poderia mandar derrubar a derradeira carta, os deuses o lambiam. Caiu exatamente a certa, o naipe perfeito, a rainha antevista por Adalpígio e necessária para emparelhar com a cigana dos sonhos, das virgens, dos amores. Zulvira, condizente com a madrugada se fazendo, gritou solução de fim, de cansaço, de repouso. Adalpígio olhou primeiro o Capitão, impecável, no ódio, em seu uniforme da guarda nacional, de gala. Depois amadrinhou as vistas para a prenda com a gratidão da lua, das estrelas, do maracujá, da flor, dos imponderáveis, que nunca o abandonaram. O Capitão, impecável, pediu licença, respeitoso, à Zulvira, tirou a pistola da cinta e desferiu dois tiros no peito do adversário. Calmo e solene o Capitão, impecável, manifestou-se categórico: “Você ganha no baralho, na rinha, na carreira, mas esta cigana, virgem, você não deflorará, filho da puta”. A flor de maracujá, caída dos lábios de Adalpígio, agarrou-lhe um pedaço da alma, debruçou-se sobre o desespero, pediu licença ao vento, que subia chorando pelas margens do Tapajoára, e nele velejou destino da sua angústia florida rumo ao desconhecido. Os cães começam a uivar.
Ceflorence     01/05/16       email  cflorence.amabrasil@uol.com.br

sexta-feira, 6 de maio de 2016

SACRALIZAÇÃO DO NADA
            Entre o antes e o depois existe um robusto nada. Sem dúvida alimentam-se teorias discordantes, embora poucas, as quais, em respeito às atenções que merecem, levaremos em consideração nos pontos chaves e mais críticos no momento correto. Registro, entretanto, por oportuno, neste nada de instante que já passou, portanto virou mais um histórico nada, que tentarei fazê-lo, rapidamente, antes que o desconfiado vigia do sanatório, que sempre me olha de soslaio tão logo tomo papel e lápis, venha atrapalhar e destrua este raciocínio brilhante e objetivo em curso. Isto prevenirá que a esquizofrenia galopante neste nada de liberdade nadifique mais este saudável nada em processo construtivo.
O intervalo que separa o passado e o futuro é exatamente proporcional ao espaço entre as infinitas divisões de inúmeros desejos livres e ejaculados na esperança de se reverterem em realidades e as perenes frustrações esvanecendo em nadas nos segundos seguintes. Se isto não é carregado de um dos mais tradicionais e respeitáveis nada que conhecemos, realmente necessitamos de uma revisão analítica sobre nossos valores, se não morais, no mínimo psicológicos. Este enorme vazio que o nada ocupa na existência é tratado de forma inversamente proporcional à importância que mereceria. Em total apoio ao nada, há proposta de compacta frente de luta para a sua louvação, com sede, CNPJ, sem fins lucrativos e participativos cerimoniais de oblação. Há inscrições abertas para o generoso dízimo, embora nada respeitável.
O agora, segundo estudiosos, é um desfigurado melancólico nada entre o que acabou e o que vai acontecer. Ou este agora já foi ou ainda não é. Novamente é o substancioso nada ocupando o seu merecido espaço. Não podemos deixar criar crise existencial sobre a eminência do nada. A trincheira de defesa nadiana tem de ser inexpugnável. Um dos mais reconhecidos pensadores contemporâneos, colocou, com sabor, de forma arguta, que quando se encontra alguém ou algo, após longa busca sobre os vários nadas, é exatamente sobre a imensidão destes nadas que o fato resplandece. Se não houvessem os nadas contrapondo os seres, os existentes que nos afetam, os acasos se atropelariam em caos. O espaço concreto entre o sim e o não é este nosso indispensável nada. O maestro e o compositor, se não harmonizassem sobre indispensáveis pausas, ou seja, os nadas sonoros, não fariam melodias, mas ruídos. Esmiucemos, ao imprevisto dos ventos, que espojam livres dos vazios distantes até os nadas infinitos, para garimparmos novos saborosos nadas do cotidiano.
A saudade é exatamente o nada muito vazio que, por mais que o poeta enfeite corrói manso como bica seca sem nadica de água, na porta fechada da casa deixada sem nada pela mulher querida, depois da caminhada longa pela imensidão do nada. É o nada em solidão. E a danada da angústia é de novo a mesma filha caçula do nadinha, amamentada de tristeza nos ocos faltados ou faltantes, sem acalantos, com as fantasias estilhaçadas nos desvãos dos inexplicáveis nadas. Não fale do desejo, nadão de nada, morando a beira da nostalgia, que se estabelece com nada de cerimônia, casa, comida e roupa lavada. Não diz adeus e inverna junto com a ansiedade traiçoeira, calhorda, amarga como nada, engole o azul e o desespero do nada se acomoda como chinelos velhos assombrando pelas escadas rangendo com os nadas arrastados pelos degraus.    
Longe de entrar em discussões acadêmicas, mas tendo de recorrer a posições concretas, devemos considerar que de certa forma o nada já foi manipulado por hábeis herdeiros dos sofistas. O que é o pecado senão o nada da virtude. É parente de parede de meia das conclusões finais sobre ética e humanismo entre judeus e palestinos ortodoxos, isto é, nada. A discórdia é o nada explicito do ódio, é o nada de amor, é o nada do senso, é a demência evidente. Este quiproquó enaltece o fanatismo em nome do nada, explodem-se bombas reais abrindo-se enormes nadas em saudações à morte. A exuberância do nada, o nada mais radical e compacto é a morte. A morte sintetiza o nada absoluto, simultaneamente é arrogância, esplendor e solução.  Paradoxo das feridas abertas para os nadas.
Chega de lamentações, nada de lamúrias. Vamos ao nada objetivo, construtivo e forte. Ao nada em botão porque ainda é nada de flor e que é nada ainda porque ainda será quando for. Entre tantos nadas, proponho brinde ao nada antes que este enfermeiro louco, nada afável, do sanatório, me coloque a camisa de força e me deixe sem nada de opção.
Ceflorence                 email  cflorence.amabrasil@uol.com.br

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Criação Em Ré Sustenido

Iniciando, é fundamental registrar que os competentes Astrólogos e Teólogos, da Sociedade dos Abandonados por Todos os Santos, Congregação Sectária das Irmanadas Confrarias dos Astronautas Aposentados, dos Presos de Segurança Máxima e das Carpideiras Sinceras, em Concílio recente e memorável, deixaram vazar relíquias antropológicas, sobre a tradicional civilização de Tremom, na região de Bercatium, onde se desenvolveu a cultura Hespônsica, dos primeiros bípedes, semi aculturados,  ainda relativamente primitivos, de uma etnia atávica já consciente e que, apesar do uso do fogo, caminhavam na diagonal, em função do estrabismo hereditário e da intensa e única dieta baseada em caranguejos e outros crustáceos. Jamais se elucidou se eram estrábicos por caminharem na diagonal, atrás dos caranguejos, ou se só se alimentavam dos mesmos pelo estrabismo. Em seu rude primitivismo, jamais utilizaram os indispensáveis e modernos conhecimentos da hipocrisia, do engodo e da malícia.

Não há qualquer dúvida, no entanto, de que no dia azul marinho, do mês da parca semeadura, do ano da fome forte e das disputas infindáveis, introduziu-se o código de Artépios, descendente  de Kartona, Deusa criadora do universo, o qual, depois de um reinado conturbado, mas duradouro, foi enterrado embalsamado entre lírios de conduta duvidosa e ao sabor de seitas cabalísticas, na ala norte dos adoradores de Sermisium. A  nós devotos, é fundamental saber que acompanharam o soberano, os cantos, as profecias e as poesias premonitórias Creônicas para  traçarem  os destinos dos recém nascidos, Semi Deuses, Átora, Atora  e Atorá.

Estes predestinados, ao receberem seus polos de destino, caminharam envoltos em mansos vendavais de alegria, rumaram suaves, com remos competentes e braços fortes, em direções desconhecidas e muitas vezes  contraditórias, mas embalados por valores e afagos puros e cantos brandos.
Chegaram ao limite do consciente ameno, apoderaram-se de volume suficiente de estrutura compatível com o disponibilizado, dentro das suas ambições e metas, para dividirem, com os criadores de paradoxos, os  ensinamentos da euforia cerimoniosa e dos pontos extremos da dúvida.
Podemos com esta rápida varredura sobre o histórico, atestar que as premonições se confirmariam textualmente. A realidade traçada para o futuro obscuro, que as vezes irreverentes pecadores ousam destruir, seguiriam rigorosamente as métricas inflexíveis das rimas dos astros e as fantasias descritas nos cerimoniais fúnebres.
Eliminando habilmente as incoerências, os Semi Deuses constataram que haviam restado, após milênios, somente três crenças, seguidas pelos canalhas, pelos caolhos e pelos calhordas, e porque não dizê-lo, pelos demais, a saber: a psicanálise, idolatrada pelos discípulos das interrogações insolúveis e permanentes, o materialismo histórico, adorado pelos criadores dos projetos inviáveis e, por último, o mercado, endeusado pelos futurólogos e justificadores dos erros pretéritos.
As demais seitas, até tradicionais, passaram a atuar mais em áreas da prestidigitação, da magia, e com muita eficiência nas finanças.
Cumprindo os mandamentos proféticos, Átora, Atora e Atorá, encontraram-se, pelos caminhos da fortuna, exatamente no lugar em que O Todo Poderoso, extasiou-se ao infinito, dando o melhor de si e caprichando no fino acabamento daquilo que acabara de concluir com muito amor. Comovido com a beleza da natureza que criara, chorou de alegria, derramando ali uma única e afetiva lágrima a qual se transformou no perene Carioca, rio idealizado e fantasiado por ele, com ternura.
Assim, a Trindade, ungida pelo destino de criar uma só e abençoada liturgia, prepara, com afeto, o porvir, respeitando rigorosamente as cerimônias proféticas que lhes foram determinadas.
Para tanto, procuraram, cuidadosamente, uma carinhosa fé, enredaram-na nos ombros firmes e aconchegantes de um credo insinuante, após uma noite em que não faltara luxúria e amor a ambos, e os dispuseram, embevecidos e sonolentos, entre quatro velas tagarelas, duas garrafas de pinga oferecidas, um risonho galo de briga preto, valente, e uma inibida pomba branca, virgem. Destaque-se, por derradeiro, neste ofertório mágico, uma encabulada farofa, entre dengosa e tímida, com as persistentes insistências dos afagos de um mambembe vira-lata, agnóstico, intisicado, mordiscando suas intimidades.
E mais, na encruzilhada entre o Beco dos Velhacos e a subida do morro, assistiu a tudo, um cacoete bêbado, maltrapilho, olhando ainda de soslaio, à jusante, a natureza esplendorosa da Baia da Guanabara, deleitada com a delicadeza da sonoridade de um berimbau gingado, de um reco-reco honesto, de um cavaco competente e um tamborim risonho.
E deste sincretismo singular, sob as benções do cacoete, a ternura do coro de instrumentos e o amor da trilogia profética, viu-se nascer e criar, com muita veneração, os Santos Irmãos Siameses, orgulho da união, da pureza e dos sonhos, o Carnaval e o Futebol. Mas, infelizmente, a brisa da previdência ou da imprevidência, assoprou leve o registro desta cerimônia que se perdeu, no sempre, para ninguém mais chorar sem alegria.

Ceflorence – e-mail cflorence.amabrasil@com.br