quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

SETE ANGÚSTIAS E DUAS CATÁSTROFES
Pelo que restou como sendo intermitentes lembranças de Antério Álaco Nunhóz, tudo se pautou após cruzar ele o extenso corredor chamuscado de azul, agredido nas bordas pelo tempo, permitindo-lhe, devaneado, acompanhar as andorinhas sobrevoarem sob os bolores do teto. Eram pelas indefinições conjugadas, aleatórias, dos bailados voos das andorinhas entrecruzando os manchados forros, que se desenhavam as claras previsões do seu próprio futuro, desvelado por Antério para si e para os companheiros do sanatório. Enquanto decifrava os volteios, sob os borrões, Antério sorria e saudava os vagados espíritos dos falecidos internos do hospício apegados ao local.  Nada havia no ambiente sem ser meticulosamente envolvido em signos, em símbolos, em hipóteses, que fugisse à acurada percepção de Antério. Quatro enfermeiros agitavam-se pelo corredor com suas bandejas de remédios e seringas a cata de compromissos, assistências ou fugidias escapadas às preguiças.    
Antério, camuflado, arrastando-se lento pela sombra para despistar o demônio, envolto em seu cobertor de lã crua, se inteirava das probabilidades futuras ao acompanhar, pelo corredor, os profissionais da enfermagem, cirandando entre os doentes nus, descalços, fitando o nada, ouvindo o infinito, se masturbando. Por serem os atendentes, um negro, dentes perfeitos, um obeso de meia idade, uma enfermeira nissei, loira, de óculos escuros, um homossexual extrovertido, envolvidos todos em socorrer os estáveis com afagos e os agitados com camisas de força, concluiu Antério, corretamente, não haver contradição das andorinhas revoarem do vitral central em direção à capela, respeitando sempre os signos do porvir, mas contra a luz. Tudo era tão claro na evolução das aves aproveitando a queda da brisa e a ascensão da constelação de Aires, grafada no imaginário de Antério. A reflexão das demências ou sanidades sobre os atores era literal: almas, andorinhas, enfermeiros, doentes, futuro, desejos, ansiedades, bolores, mudez refletiam destinos. Os aparentes paradoxos eram um livro aberto, uma homenagem ao óbvio, a ser lido. Tempo, silêncio, contemplação, fé; na capela Antério sussurrou a Caltégio Recil, que fugisse da fila de comunhão da esquerda, pois as hóstias ali oferecidas pelo sacristão, um estroina, e não pelo monsenhor, foram desconsagradas arbitrariamente, sob a alegação de que o cálice delas habitara o ofertório do beligerante São Jorge, ativista de candomblés.
Confirmara-se a exatidão dos fatos, pois o próprio Antério consultou seu pé esquerdo profundamente afetado emocionalmente e só aguardando as determinações do imponderável, que o mordiscava insistente sob a bainha do cobertor. Hértese Ábias, companheiro de quarto, confidenciou-lhe, de soslaio, que se a lagartixa eufórica o provocasse novamente seria deixada em jejum, lambuzada em angústia com ejaculação e a hipnotizaria para exibi-la às visitas dos parentes dos dementes. Antério considerou que a sanidade de Hértese estaria em fase bipolar. Habilidoso, com carinho, despregou Artério um triste reflexo da gota chuvada pendente sobre o vitral e beijou o mimo antes de entregá-lo a Hértese. Dissuadiu-o assim de gestos agressivos, pois haveria sempre o conflito existencial: morreria o dia em solfejo ou o pesadelo galoparia sobre os delírios? Signos das hipóteses ao cair da noite, solidão e destino.
Ceflorence     28/11/16    email          florence,amabrasil@uol.com.br

2 comentários:

  1. Caro Florence, faz tempo que nao leio seus textos e me gratifico em lembrar tantas pérolas de outrora: devaneado, fugidias, soslaio e por ai vai. Sensacional o nosso vocabulário. Abs Knud

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  2. caro knud

    É uma alegria tê-lo de novo visitando as crônicas. Motiva a continuar a escrever mais e sempre. Grande abraço.

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