SETE ANGÚSTIAS E DUAS
CATÁSTROFES
Pelo
que restou como sendo intermitentes lembranças de Antério Álaco Nunhóz, tudo se
pautou após cruzar ele o extenso corredor chamuscado de azul, agredido nas
bordas pelo tempo, permitindo-lhe, devaneado, acompanhar as andorinhas sobrevoarem
sob os bolores do teto. Eram pelas indefinições conjugadas, aleatórias, dos bailados
voos das andorinhas entrecruzando os manchados forros, que se desenhavam as claras
previsões do seu próprio futuro, desvelado por Antério para si e para os companheiros
do sanatório. Enquanto decifrava os volteios, sob os borrões, Antério sorria e
saudava os vagados espíritos dos falecidos internos do hospício apegados ao
local. Nada havia no ambiente sem ser
meticulosamente envolvido em signos, em símbolos, em hipóteses, que fugisse à acurada
percepção de Antério. Quatro enfermeiros agitavam-se pelo corredor com suas
bandejas de remédios e seringas a cata de compromissos, assistências ou
fugidias escapadas às preguiças.
Antério,
camuflado, arrastando-se lento pela sombra para despistar o demônio, envolto em
seu cobertor de lã crua, se inteirava das probabilidades futuras ao acompanhar,
pelo corredor, os profissionais da enfermagem, cirandando entre os doentes nus,
descalços, fitando o nada, ouvindo o infinito, se masturbando. Por serem os
atendentes, um negro, dentes perfeitos, um obeso de meia idade, uma enfermeira nissei,
loira, de óculos escuros, um homossexual extrovertido, envolvidos todos em socorrer
os estáveis com afagos e os agitados com camisas de força, concluiu Antério, corretamente,
não haver contradição das andorinhas revoarem do vitral central em direção à
capela, respeitando sempre os signos do porvir, mas contra a luz. Tudo era tão
claro na evolução das aves aproveitando a queda da brisa e a ascensão da
constelação de Aires, grafada no imaginário de Antério. A reflexão das demências
ou sanidades sobre os atores era literal: almas, andorinhas, enfermeiros,
doentes, futuro, desejos, ansiedades, bolores, mudez refletiam destinos. Os aparentes
paradoxos eram um livro aberto, uma homenagem ao óbvio, a ser lido. Tempo,
silêncio, contemplação, fé; na capela Antério sussurrou a Caltégio Recil, que fugisse
da fila de comunhão da esquerda, pois as hóstias ali oferecidas pelo sacristão,
um estroina, e não pelo monsenhor, foram desconsagradas arbitrariamente, sob a
alegação de que o cálice delas habitara o ofertório do beligerante São Jorge,
ativista de candomblés.
Confirmara-se
a exatidão dos fatos, pois o próprio Antério consultou seu pé esquerdo profundamente
afetado emocionalmente e só aguardando as determinações do imponderável, que o
mordiscava insistente sob a bainha do cobertor. Hértese Ábias, companheiro de
quarto, confidenciou-lhe, de soslaio, que se a lagartixa eufórica o provocasse
novamente seria deixada em jejum, lambuzada em angústia com ejaculação e a
hipnotizaria para exibi-la às visitas dos parentes dos dementes. Antério
considerou que a sanidade de Hértese estaria em fase bipolar. Habilidoso, com
carinho, despregou Artério um triste reflexo da gota chuvada pendente sobre o vitral
e beijou o mimo antes de entregá-lo a Hértese. Dissuadiu-o assim de gestos
agressivos, pois haveria sempre o conflito existencial: morreria o dia em
solfejo ou o pesadelo galoparia sobre os delírios? Signos das hipóteses ao cair
da noite, solidão e destino.
Ceflorence 28/11/16
email florence,amabrasil@uol.com.br
Caro Florence, faz tempo que nao leio seus textos e me gratifico em lembrar tantas pérolas de outrora: devaneado, fugidias, soslaio e por ai vai. Sensacional o nosso vocabulário. Abs Knud
ResponderExcluircaro knud
ResponderExcluirÉ uma alegria tê-lo de novo visitando as crônicas. Motiva a continuar a escrever mais e sempre. Grande abraço.