A PRAÇA
Do
fundo se percebia o princípio, distraído, espreguiçando indiferença para não
assumir compromisso com as cores que insistiam em borrar o horizonte. Fez-se, e
por ser, assim sem trejeitos ou alternativas, a melhor posição para mascar, de
longe, absurdo doce, sabor irrelevante, era aquela. A brisa, engatinhando entre
os arbustos irrequietos, esperou chegar a tarde fazendo-se carinhosa em si. As
rimas não chegaram antes da Ave Maria, mas ninguém proveu ou deu atenção. Tempos
azuis e provérbios, balbuciavam, sussurravam, acalantavam. Assim os deuses
definiram, desde quando as bacanais exigiam um dia de repouso para as reflexões.
Por gregoriana, a semana vestida de infinito se enfeitou de domingo envolvido
por quem se distraia. Tudo era praça. E por ser, as fantasias balançavam os
corpos dominicais dos andejos ocasionais, repousados, exibindo e trocando desejos,
sorrisos, flertes – vida amena e trocadilhos. O pintor salpicou alegria sobre a
paleta e desenhou a praça para mostrar as crianças se escondendo entre as
ilusões. O indefinido escorregou expressivo, solitário, detalhes delicados
grafados na melancolia, ouvindo o nada.
A
habitual ansiedade do rato, em temporada curta de jejum e fuga, preferiu brincar
no rastro vermelho do sol sem fazer-se nem mesmo de rogado. O tempo achou os
telhados adequados para receberem o sereno que só chegaria depois das mentiras
se recolherem. Confirmou-se o esperado: não daria conta de assistir, o infinito,
a tudo que a praça poderia oferecer antes do vento desfolhar, em rodamoinhos, bolinando,
descontraído, as árvores despreocupadas. O cão, que não se sabia vira-lata malhado,
lambiscava no faro o sabor das pernas perambulando confundidas, alvissareiras, libertas,
antes de definir seu rumo atrás de um par-de-calças, atencioso, que o acarinhou
no assovio. Por respeito ao procedimento, os sinos dobraram a primeira à
esquerda, rua principal por onde ganharam seguidores fiéis. A esmo, os sinos
dobram, sem definirem suas direções, desde os tempos em que as distâncias eram cegas
e as cores, surdas.
O
chafariz se constrangia com as luzes hipócritas que lhe impuseram para saudar o
domingo. Enquanto suas águas dançavam, deixava-se curioso, o chafariz, assistir
subir pelos degraus da matriz os pecados não confessados, as saias rodadas, as
mentiras da semana, os sapatos engraxados, as brigas dos casais, os desejos
provisórios, as insinuações, as invejas em formação ou amadurecidas. A porta
grande da igreja devorava as arrogâncias, as saudações, as hipóteses. Um ventre
realizado, plenamente salpicado de afeto e gravidez, empurrava à frente o
carrinho do seu incipiente Complexo de Édipo em conflituosa formação, dormindo
enquanto podia.
O tempo correu para o incerto. Os sinos desdobraram
retorno. A porta enorme da matriz, satisfeita, por ser a última e a mais em
conta cerimônia do dia, regurgitou os pecados confortados, os sorrisos
comungados, as mentiras renovadas, o sermão elogiado. As árvores irritadas pelo
adiantar da hora impuseram aconchego aos pássaros e aos silêncios. Só então o chafariz
chorou descontraído, sem as suas cores ridículas e os andarilhos indiscretos. A
praça se foi, o vazio se fez.
Ceflorence 24/07/16 email
cflorence.amabrasil@uol.com.br
Bela crônica, delicada e leve como a brisa de um bom domingo!
ResponderExcluirLeila, muito obrigado pelo carinho e pela atenção.
ExcluirEspero que continue agradando e você lendo as crônicas.
Abraço.
Carlos Florence
Bela descrição dos elementos de uma praça qualquer... genérica e única, ao mesmo tempo.
ResponderExcluirSra. Marcia, mais uma vez gratifica-me ter a senhora acompanhando o que escrevo.
Excluirmuito obrigado pelo apoio e incentivo.
Carlos Florence.