quinta-feira, 14 de julho de 2016

ENTRE DOIS DESTINOS E OUTRAS REGALIAS
Pensou em passar despercebido pelos escaninhos do delírio antes de assumir posição definida. Quem despercebido passou pensando indefinido? Para deixar claro, procurando recuperar, de início, meu último sonho escorrendo pelas frestas do tempo orvalhado e alegre, janela abaixo e não ser avesso às recordações dei-me conta da solidão de olhos largos entretida em enlouquecer-me. E de tudo isto, lânguidos como serpentinas das quartas feiras de cinzas, sobre uma mancha de mofa, como agem estas imprecisas ou canalhas ficções, restaram pouco e minguados pedaços esfumaçados onde as gaivotas brincavam de solfejos, confundindo-se em volteios com o além. Do que sobrou, sem anotar em picados pedaços esparsos, misturados com lágrimas e soluços, o vento da agonia deixou para traz bem pouco. Portanto, com as incertezas de sempre que se evacuam entre um lasca abobada de insônia perambulando, até desprezível, sem serventia, se não fosse extenuante, e um risco azul subindo pela parede para desaparecer no nada, atraquei-me com o que sobrara do sonho fugidio, dando-me por satisfeito e conformado. Em seguida, abri a gaveta da esquerda, forçando para não acordar-me e arrastando para o travesseiro duas ansiedades, mais o beija flor sugando os lábios doces da menina sorrindo.
Atentei para não deixar escapar entre as dormências o que desejava preservar de alucinação, antes de despertar. Tomando correta distância da névoa, crivei-a em delicada vagina, com o estilete pendendo da hipótese mais próxima, adentrando o útero aquecido que me afagou maternalmente. Preparado para a morte, acompanhei cuidadosamente sobre o lustre o gato siamês esbelto, o mesmo da moça linda do altar de baixo da missa das nove, com quem flertara um padre nosso e quando muito meia ave-maria, ouvindo um Réquiem de Mozart. Segui o felino na captura das sombras brincando da névoa deflorada sobre a parede e desaparecendo no vácuo furta-cor imenso, por onde transitavam a vagina uterina, o gato tranquilo, a névoa carinhosa e a moça linda. Consegui chorar, mas sem orgasmo.
Só percebi por onde transitavam meus anseios ao ouvir o som vermelho cortando o silêncio com a mesma tranquilidade com que a navalha cruel agride o provérbio antes de ser distribuído aos crentes. Ainda em sustenido, dei conta de que sumira da minha cômoda dos paradoxos preferidos, trancada com mentiras e demências, a melhor síntese de loucura que encontrara e trouxera pela manhã do mercado dos alucinados. Por precaução entregara à faxineira da noite que adoça os sonhos e embala as insânias nas pencas de ceticismo maturadas no sereno, sem inveja, e adormecidas, para não se acordar as crianças antes que aprendam a mentir.
Os passos eram delicados e tinham o colorido da esperança. Por vingança o sonho a dissolveu antes de eu tentar envolvê-la. Só senti o perfume do silêncio sumindo e ela, disfarçada de saudade, nunca mais voltou.
Ceflorence    06/07/16         email  cflorence.amabrasil@uol.com.br

2 comentários:

  1. Maravilhosas as suas crônicas, Carlos!Adoro,de verdade. E também rio muito. Algumas construções você deveria vender e caro: "abri a gaveta da esquerda, forçando para não acordar-me e arrastando para o travesseiro duas ansiedades".
    Obrigada por compartilhar!
    Abraço!
    Tânia

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  2. Tania é uma alegria receber seus retornos, ainda mais considerando que considero você uma exímia esgrimista de palavras. Muito obrigado. Carlos.

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