Pouso de Cariampó
Muito repetido,
sempre, a morte de Adalpígio Romão se deu durante baile e em disputa por uma
cigana, dita romena de nascença e manejo, quinze anos, trazida em euforias
medievas, pompas requintadas e bem instruídas, para provocar ansiedades em Pouso
de Cariampó. Despertou destraves respeitosos devidos por se dispor, a moça,
tímida, subir as águas mansas do Tabajoára, rio dos poemas e das rimas, desde a
foz em Botiguará-Mirim, e chegar ao destino cavalgando potro marchador, arreado
para andar menina, de banda só, em silhão cravejado de invejas. E tudo nos
propósitos para preservar virgindade da vaza de baixo e de beijo na boca, de
cima, como prometia Zulvira, respeitada cafetina. A prenda despertou disputas e
invejas das águas do Tapajoára, às serras do Quebra Cangalha.
A primeira noite de anseios teria de ser memorável para
atrair pretendentes e finalizar com o zangão das euforias. Na vastidão do cerrado,
o mimo se deu conta e o vento esparramou boatos para ninguém deixar de vir ao
baile arvorado de encantos, para o acasalamento da defloração, com dueto
singelo de pianola e violino. A bebida dobrou de preço, aumentaram os lampiões,
provocando, incitando, ostentando desejos, luxúrias. O bacará do pôquer, jogatina
tramada no imaginário fértil de Zulvira, para a noite de núpcias, abriu
esquentado com mais de setenta apregoados. Mas nada como o tempo para sanar os
propósitos. A tertúlia das apostas foi descarnando raso, pelas bordas sociais e
financeiras, os menos providos e prevenidos, na proporção que o arremate alçava
e o sonho evaporava.
Na rinha das oferendas só profissional de paixão e abastança
ficou no rolar das apostas. O baralho murmurava baixo e os repiques falavam
alto. Derradeiro, no tablado para os chamegos ciganos, virgem, sobrou, além de
Adalpígio, o Capitão Pelário Caveta Sobros, impecável, ostentando sua farda
nova, encomendada para o momento. Linho azul marinho importado, lapelas
douradas bordadas, capricho indiscutível, imponente e sisudo, apalpando o
bigode e os cabelos engomados. A gala ousada se justificava para ostentar a
patente de capitão da guarda nacional de pronto adquirida da recente república revolucionária
proclamada em substituição à monarquia decadente deposta e a extinção do trabalho
escravo. Veio o último lance, madrugada, duas horas. O Capitão, impecável, altivo
e seguro, recebeu a carta para fechar seu jogo, exposta por Zulvira, firme e
insinuante na boleia dos acontecimentos; requintes, suspenses, interjeições. Do
outro lado, como fazia sempre nos arriscados, fosse de baralho, roleta,
carreiras de cavalos ou brigas de galos, Adalpígio estirou os regaços dos anseios,
pediu prudência a si mesmo, escutou os palpites e as juras das certezas e das
dúvidas insinuadas nas beiradas transparentes da lua crescente. Ali nunca
mariscou mentira da parceira mimosa, “lua, lua ilumine”. Consultou solidão,
Adalpígio, com a vista dispersa ainda no cosmos e na porventura. Indeciso, sem
premonitório, cuspiu de lado e se deu por indeterminado de procedência. Amealhou,
de soslaio, tocaiado no portanto preferido, lado que conversava com o além, lambeu
fé no desaforo do destino, devaneou confiança nos astros, beijou o crucifixo
que a mulher lhe dera na quermesse de São Jerônimo, padroeiro de sua família e
em nome de quem foi crismado muito fervoroso. Coçou os testículos com a canhota,
por ser sexta feira das almas sem ventura, assobiou um minueto improvisado em
ré menor e, quando ameaçou postura de comandar vir carta, achou melhor
prudência de pedir tempo para urinar e, no incisivo de destravar solução, saiu.
No pé do maracujá, bonito, desaguou longo, como carecia o imaginário e a
atenção. O maracujá, amigo de muitas luas, aquiesceu da demanda, derrubou manhoso
sobre o ombro de Adalpigio a última flor desabrochada, roxa, brincando de ir se
branqueando nas pontas. Era a vaza que Adalpígio esperava. Mordeu firme o cabo
do maracujá, flor, riu deboche, boca travada na oferta. O fado assentara
destino, sem torneios ou dúvidas, poderia mandar derrubar a derradeira carta,
os deuses o lambiam. Caiu exatamente a certa, o naipe perfeito, a rainha antevista
por Adalpígio e necessária para emparelhar com a cigana dos sonhos, das
virgens, dos amores. Zulvira, condizente com a madrugada se fazendo, gritou
solução de fim, de cansaço, de repouso. Adalpígio olhou primeiro o Capitão,
impecável, no ódio, em seu uniforme da guarda nacional, de gala. Depois
amadrinhou as vistas para a prenda com a gratidão da lua, das estrelas, do
maracujá, da flor, dos imponderáveis, que nunca o abandonaram. O Capitão, impecável,
pediu licença, respeitoso, à Zulvira, tirou a pistola da cinta e desferiu dois
tiros no peito do adversário. Calmo e solene o Capitão, impecável, manifestou-se
categórico: “Você ganha no baralho, na rinha, na carreira, mas esta cigana,
virgem, você não deflorará, filho da puta”. A flor de maracujá, caída dos
lábios de Adalpígio, agarrou-lhe um pedaço da alma, debruçou-se sobre o
desespero, pediu licença ao vento, que subia chorando pelas margens do
Tapajoára, e nele velejou destino da sua angústia florida rumo ao desconhecido.
Os cães começam a uivar.
Ceflorence 01/05/16 email
cflorence.amabrasil@uol.com.br
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