quinta-feira, 12 de maio de 2016

Pouso de Cariampó
 Muito repetido, sempre, a morte de Adalpígio Romão se deu durante baile e em disputa por uma cigana, dita romena de nascença e manejo, quinze anos, trazida em euforias medievas, pompas requintadas e bem instruídas, para provocar ansiedades em Pouso de Cariampó. Despertou destraves respeitosos devidos por se dispor, a moça, tímida, subir as águas mansas do Tabajoára, rio dos poemas e das rimas, desde a foz em Botiguará-Mirim, e chegar ao destino cavalgando potro marchador, arreado para andar menina, de banda só, em silhão cravejado de invejas. E tudo nos propósitos para preservar virgindade da vaza de baixo e de beijo na boca, de cima, como prometia Zulvira, respeitada cafetina. A prenda despertou disputas e invejas das águas do Tapajoára, às serras do Quebra Cangalha.
A primeira noite de anseios teria de ser memorável para atrair pretendentes e finalizar com o zangão das euforias. Na vastidão do cerrado, o mimo se deu conta e o vento esparramou boatos para ninguém deixar de vir ao baile arvorado de encantos, para o acasalamento da defloração, com dueto singelo de pianola e violino. A bebida dobrou de preço, aumentaram os lampiões, provocando, incitando, ostentando desejos, luxúrias. O bacará do pôquer, jogatina tramada no imaginário fértil de Zulvira, para a noite de núpcias, abriu esquentado com mais de setenta apregoados. Mas nada como o tempo para sanar os propósitos. A tertúlia das apostas foi descarnando raso, pelas bordas sociais e financeiras, os menos providos e prevenidos, na proporção que o arremate alçava e o sonho evaporava.
Na rinha das oferendas só profissional de paixão e abastança ficou no rolar das apostas. O baralho murmurava baixo e os repiques falavam alto. Derradeiro, no tablado para os chamegos ciganos, virgem, sobrou, além de Adalpígio, o Capitão Pelário Caveta Sobros, impecável, ostentando sua farda nova, encomendada para o momento. Linho azul marinho importado, lapelas douradas bordadas, capricho indiscutível, imponente e sisudo, apalpando o bigode e os cabelos engomados. A gala ousada se justificava para ostentar a patente de capitão da guarda nacional de pronto adquirida da recente república revolucionária proclamada em substituição à monarquia decadente deposta e a extinção do trabalho escravo. Veio o último lance, madrugada, duas horas. O Capitão, impecável, altivo e seguro, recebeu a carta para fechar seu jogo, exposta por Zulvira, firme e insinuante na boleia dos acontecimentos; requintes, suspenses, interjeições. Do outro lado, como fazia sempre nos arriscados, fosse de baralho, roleta, carreiras de cavalos ou brigas de galos, Adalpígio estirou os regaços dos anseios, pediu prudência a si mesmo, escutou os palpites e as juras das certezas e das dúvidas insinuadas nas beiradas transparentes da lua crescente. Ali nunca mariscou mentira da parceira mimosa, “lua, lua ilumine”. Consultou solidão, Adalpígio, com a vista dispersa ainda no cosmos e na porventura. Indeciso, sem premonitório, cuspiu de lado e se deu por indeterminado de procedência. Amealhou, de soslaio, tocaiado no portanto preferido, lado que conversava com o além, lambeu fé no desaforo do destino, devaneou confiança nos astros, beijou o crucifixo que a mulher lhe dera na quermesse de São Jerônimo, padroeiro de sua família e em nome de quem foi crismado muito fervoroso. Coçou os testículos com a canhota, por ser sexta feira das almas sem ventura, assobiou um minueto improvisado em ré menor e, quando ameaçou postura de comandar vir carta, achou melhor prudência de pedir tempo para urinar e, no incisivo de destravar solução, saiu. No pé do maracujá, bonito, desaguou longo, como carecia o imaginário e a atenção. O maracujá, amigo de muitas luas, aquiesceu da demanda, derrubou manhoso sobre o ombro de Adalpigio a última flor desabrochada, roxa, brincando de ir se branqueando nas pontas. Era a vaza que Adalpígio esperava. Mordeu firme o cabo do maracujá, flor, riu deboche, boca travada na oferta. O fado assentara destino, sem torneios ou dúvidas, poderia mandar derrubar a derradeira carta, os deuses o lambiam. Caiu exatamente a certa, o naipe perfeito, a rainha antevista por Adalpígio e necessária para emparelhar com a cigana dos sonhos, das virgens, dos amores. Zulvira, condizente com a madrugada se fazendo, gritou solução de fim, de cansaço, de repouso. Adalpígio olhou primeiro o Capitão, impecável, no ódio, em seu uniforme da guarda nacional, de gala. Depois amadrinhou as vistas para a prenda com a gratidão da lua, das estrelas, do maracujá, da flor, dos imponderáveis, que nunca o abandonaram. O Capitão, impecável, pediu licença, respeitoso, à Zulvira, tirou a pistola da cinta e desferiu dois tiros no peito do adversário. Calmo e solene o Capitão, impecável, manifestou-se categórico: “Você ganha no baralho, na rinha, na carreira, mas esta cigana, virgem, você não deflorará, filho da puta”. A flor de maracujá, caída dos lábios de Adalpígio, agarrou-lhe um pedaço da alma, debruçou-se sobre o desespero, pediu licença ao vento, que subia chorando pelas margens do Tapajoára, e nele velejou destino da sua angústia florida rumo ao desconhecido. Os cães começam a uivar.
Ceflorence     01/05/16       email  cflorence.amabrasil@uol.com.br

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