quinta-feira, 19 de maio de 2016

DOS DESTEMPEROS E DESASSOMBROS
            Sabia e sabia de tal qual chover, o tempo destemperado, mercês das pragas desaforadas dos desacordos entre deus e o adágio, segundo o evangelho de satanás, que o mundo se derretia em voçorocas graúdas, a lama se perdia nas enxurradas grossas, carreadas para o Tapajoára, cortador rio dos cerrados, das rimas, dos poemas e das saudades. O vento intendia, ouriçado, de desmanchar o intuito dos passarinhos cantarem para des-brincarem de silêncio. Do jeito dos andados, até o mar, na foz da boca do Tabajoára, viraria brejão dos infinitos, para atolar veleiro, saracura, inveja e carroça, segundo Jatobinho Pescador, quando lançava a rede certeira e ela engastalhava nas quiçaças. E na fartura d¹água tanta não remediava pedir provimentos aos aléns, acender vela, medir encarrilhada dúzia e tostão  de reza preventivas, das repetidas por Vó Geninha Romão. Benéficas preces serviçais e cumpridoras nas tarefas de estancar corisco eriçado. Menos progredia proveitoso atiçar sal grosso na taipa do braseiro, enrolado em melão seco de são-joão, bento na certeza da fé cumprida, desde Ramos, pendurado para resguardo das intempéries no fumeiro e amarrado por embira de taboa da Lagoinha do Pererê para esfumaçar exu gonzo, nas ajudas de des-chuvar, como definia carinhosa e beata Babá Miombá do Apucaré.
Insolúvel de ajustar, o chão apodrecia sem sustento de parar em pé quem destemia andarilhar calçado nas bibocas encharcadas. Só dedão graúdo encravado, curto, no sovaco do barro, aprumava postura. Assim mesmo no palmilhado de jaboti curioso e cuidado de cobra no cio. No tormento, se punham os povos, única querência de atiçar fora das casas, por compra de muita carência faltada, comida, pinga, fumo, farmácia do Tio Zefato, reza na capela, se promessa vencida, ou pagar pensão da manteúda na zona, antes que a moça viesse buscar em lugares inconvenientes. E sabia tanta água, que Clotário Romão desaturdia entre amaldiçoar o tempo ou pedir ajuda aos santos já desacorçoados de tantos préstimos. Acabrunhava perdão, tudo, e corria enxurrada no ponto justo de esconder atrás do silêncio o canto da seriema campeando o parceiro na capoeira; triste encanto, seriema e canto, se sumiam no infinito; “oh-deus acuda”, mas nem isto se dava de amparar das tempestades. Verão quente, bravo, voltava nas comparações, como há muito não se dizia ter sido em Pouso do Cariampó. Pois foi e era. De tanta borraceira, agrura, calor, solidão, as brotoejas avermelhavam, alargavam inchadas, parindo medo de a pele desamarrar do corpo e o vento arrastá-la na lama. Nunca Tio Zefato, boticário, vendera tanto emplastro, Mezinha Santa Pia, em sua vida. As lamúrias eram desfeitas e mostradas, às claras, nas missas, nas bodegas resmungando angústia e mágoa. Trocavam-se assim, no varejo, por moeda de bom metal e ao par, lamentos por minuto de ouvido e atenção disponíveis. O propósito consolava e despercebia por uns esquecimentos de dias, até voltar e a vida, retomar desajustada. Coçar as perebas escalavrava, como se urtiga fosse e tivesse roçado no despropósito, desprevenido.
Se fez, fazia, foi, contadinho como se pôs. As ânsias lacrimavam os olhos, derrubando gotas grossas sobre o barro. Então a amargura gorda, desconjurada, entranhava no barro chorado, fundia bolotas que as águas não derretiam. Festa, a gurizada fartava no gude, no estilingue, nas patas dos cavalos tropicando nas pelotas jogadas nos propósitos. No indefinido, os passarinhos, pombas e gambás, sem terem nem mais onde alongar da umidade, enfurnavam pelas chaminés, aninhando mesmo por ali. Só bambu comprido, com querosene, creolina e pó-de-mico, enfiado pelos buracos para enxotá-los e assim os ninhos entupindo não enfumaçarem as casas. Nas vielas da corruptela, então, algazarras, risadas e deboches, depois dos tombos das montarias, dos que se diziam peões, tropicando nas pelotas arredondadas, de lama e lágrimas, lançadas pela criançada.
Católicos só saiam à rua com terço ou breviário, protestantes com quitação dos dízimos, devotos de Oxum com arrudas preventivas nas orelhas. Agnósticos indefinidos, palitando dúvidas eternas, purgavam, por seguro e medo preventivo, portando, disfarçados, uma figa, um amuleto e, na falta, quebranto dos despropositados, escrito no avesso da folha dobrada de sucupira, por Mãezinha do Cajimó, acatada benzedeira e vidente, conhecida rio acima e rio abaixo, pelas margens então vazando grossas do Tapajoára, roncando enchente. Acanhado, era o perfil moroso do rio, escorrendo mole e quieto para beijar o mar e carregando, pesado, as saudades dos agarrados às tristezas de Cariampó. Os aficionados dos indefinidos garantiam ser de soberba valia, na porventura, as mandingas promitentes de Mãezinha.
Clotário ouviu do canto da coruja estalar o teto e despencar ninhos das pombas com seus filhotes e piolhos sobre a taipa amargurada. Os fantasmas dos Romão amarrados pelas teias de aranhas se desprenderam dos forros do sobrado e das angústias de Clotário e se puseram ao léu vendo dois centenários de conflitos rolarem pelas enxurradas. ( Parte de algo a mais em gestação)  

Ceflorence  11/05/16    email    cflorence.amabrasil@uol.com.br

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