sexta-feira, 4 de março de 2016

ORQUÍDEAS
            Não sei se veio do inconsciente, mais enfurnado, ou do deserto, árido, a mim alheio, mas chegou certa e pontual a única corrosão que esgarça a alma para rever-se, o tempo. Os fatos foram devolvidos um a um, como migalhas desleixadas esquecidas aos pássaros, que imitam as esperanças ao voarem para se perder em inexplicáveis. No entremeio, as saudades tresandavam borboletas fugidias ou, melhor, fantasias brincando de tristeza. Retornei assim ao nada, passo a passo, com a mesma tranquilidade e segurança com que a hipocrisia pare o remorso. Suponho: tais pipas vistosas, vaidosas, soerguendo o vento para exibirem-se mais do alto. Só a solidão sabe garimpar estes indefinidos, devaneios estilhaçados, com certa destreza carente, para separar, na bateia da vida, a angústia dilacerada dos sonhos, que não nasceram, daqueles que gostariam de ser sonhados. Na falta de talvez, fui-me esfarpando envolto em silêncio, antes de propor vomitar os anseios largados sobre a existência. O tempo remoeu-me sem perdão.
Distrai-me com o azul que se despedia para brincar de noite. Sobre a janela do alpendre acompanhei, obcecado, com ternura, uma réstia de formigas. Acreditei no convencional: as formigas nascem, vivem e, dizem, seguem impávidas, indiferentes até a morte, inconscientes dos seus destinos pobres e das sandices de não conseguirem sequer sofrer. Pior, é textualizado, não sentem faltas. Alienadas? Minha ternura galopa suave para a inveja seguindo a fila indiana até o ponto em que elas se recolhiam esprimidas entre um batente podre da janela e o reboque esgarçado. Socorri-me de seus destinos, pobres de formigas miúdas, alienadas, atraídas fervorosas aos batentes podres, e transmudei o paralelo da fileira para o meu imaginário visionário, talvez idiota.
Se conquistasse abnegado escarafunchar pelos meandros da minha angústia, escalavrando enfileirado o que teria nas entranhas obsessivas e confusas das alucinações, como se fosse formiga despretensiosa, os fantasmas inconscientes bailariam sob minha regência e os medos fugiriam apavorados pelos escaninhos da liberdade. A consciência é cruel e não perdoa a credulidade: uma paranoia petulante mordiscou-me os devaneios, com a impunidade do concreto. Ao tentar assegurar-me que não enlouquecera, procurava distinguir se o som que me angustiava seria o horizonte, atraindo-me para cobiçar a tranquilidade com que ele abraçava o ocaso ou se os cachorros do vizinho estariam amofinados pelo gato rajado esgueirando-se soberbo pelos telhados toscos do destino. Sem solução, optei confundir-me em uns emaranhados pessoais, ansiosos e malcriados.  Não sei por que me debruço sobre estes idos, sidos, vividos, intransigentes sempre, hipócritas às vezes? Esta a razão de não acalantar mais o azul de antigamente a que tive direito, sem ter carência. Mas quando careci, careceu. Se houvesse solução mastigaria alegria, desprezaria melancolia e não acariciaria mais a expectativa. Um beija-flor se fez sorriso e pousou sobre a fortuna. Longe das minhas esperanças.
Os dias se foram com a indiferença com que as saudades castigam os fins. Conformar-me-ia? O passado convidou-me para rever as tristezas, a sós. Abrimos meia garrafa de vinho, duas melancolias e um acerto de contas. Trouxe consigo, não esqueço e nem poderia, a última lágrima miúda, escondida, antes de não cair, tremulando entre a ansiedade e a esperança que Lédia carregaria para o jamais. Assim, penduramos um por que no incerto. Não éramos mais, desventurados sucumbimos em fomos.
Acabrunhado restei, parvo, sem definir se a orquídea, sobre a mesa, viera sozinha, se Lédia trouxera ou eu a imaginara. Mas o desespero é que a orquídea se impregnou de passado para me assombrar no presente.
Ceflorence   20/02/16        email   cfloence.amabrasil@uol.com.br 

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