sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

DOS DISTRITÚRBIOS DE ATAMBÓ

Atambó dos Encantos foi o imprevisto da maré montante que derramou carinhosa às margens brancas das areias, borrifadas do sensual, para que os acontecidos não se arrependessem dos casos e dos acasos que se sucederam naqueles esquecidos. Capilinho da Penga expedia afeto, sem pressa e a prazo, por qualquer desacato ou sorriso de enfeitiçada pelos seus dengues e madraceados, sem remorsos ou soberbas. Quem campeasse em Atambó o encontraria, no mais das vezes, perto do Atacado do Repasto da Ema ou na Rua da Miúda, estreita, torta, suja e sem vaza ou no preparo de esconder-se na boca do Morro da Fumaça. Tudo junto ao mercado velho aonde a vida se fazia e a morte visitava amiúde nas vinganças prometidas e aprazadas.
Lá, nas horas vadias de Capelinho, em que não jogava capoeira no Remanso dos Esfolados ou não se ocupava, profissional, nas maranhas do baralho na Praça do Bem-te-Vi, as manobras não davam sossego. Tinha dele sempre que sobrar qualquer para desafinar o Moenga, mau caráter do cabo da fardada, que não lhe podia escutar o nome, sem chegar, silenciado de calhorda, para morder um tanto, por conta do que ele nem fizera. Fugia Capelinho, sempre, dos mandatos do juizado para despistar algum atazano de emprenhada para o sustento do bem nascido, que empolgava de ter a sua cara, e era de direito dela demandar, por assim ser cumprido. E nem por isto o sol deixava de nascer. Dos sacramentos, se respeita pelo precavido e Capelinho tinha por bom juízo não roer desaforo, não ouvir lengalenga e ficar longe de soldado, gravidez e cura.   
             Na Congada de Reis, entestou Capelinho de galgar a Ladeira dos Afogados e cumprir carência de benção com Mãezinha do Acaré. Mãezinha, dadivosa, estava sempre de bem mandada dos aléns e carecida de Oxum-Abalô para as orações de transe no terreiro dela no Abatopungá do Alto. À noite, subindo, Capelinho assobiava ostensivo de bem servido, só em alegria, vendo a lua brincar de ladra, dissimulando as estrelas do lado do mangue, que o mar beijava manso. Os cachorros uivavam pedindo a Jaci crescente que não se escondesse, pois os deuses já desceriam prestimosos tão logo os atabaques castigados nos coros curtidos, clamando à Mãezinha rogar às almas que, em graça, encarnassem os puros para os confins purgarem. “Que Iansã, companheira de Xangô, e que destina os ventos e as tempestades, nos acaricie em tempo” – reconfortou-se Capelinho, na solidão do destino, em busca do aconchego farto de Mãezinha, morro acima, ensimesmado de fé, a-tendo. 
             O terreiro foi se forrando de humildade e crença. O pescoço da lua esticou a curiosidade para o olhar fartar. Os atabaques e os canzás invadiam pelas entranhas os anseios dos carentes enquanto as filhas e os filhos de Iansã despiam angústias para o reconforto dos passes. Os espíritos rolavam doces pelos telhados, pelas paredes e pelos incertos, no só aguardar Mãezinha ordenar as escolhas dos pares. Tudo inebriava: o batuque, a magia, o calor, o sensual, o excêntrico. Mãezinha deixou Ogum deflorá-la em transe para esplendor do divino e regozijo dos vivos clamando incubação dos mortos. O irracional pungente expurga o racional inútil. O céuterra une-se como antes da criação fosse,... e, em sendo, era.
            Capilinho rodopia nos magnetismos do inconsciente invadido, devaneando atração pela alma de Livinha encarnada na beleza sensual da desconhecida. As solidões, ambas, atiram-se às esperanças. Mãezinha acarinha, na direita, no tom grave de Abalô, Livinha do Pontal, cafetina de fina flor, que enfeita a própria casa, conhecida na Rua da Alfandega, com o capricho da escolha das rosas moças que se desmancham em êxtases aos carentes do afeto fiduciário barganhado. Do outro lado, Mãezinha aconchega, no regaço quente, Capilinho enfeitiçado do olhar de Livinha. O mundo azulou só do porvir se sendo e Mãezinha garante que as almas dos dois retornaram, ali, depois de muitos destinos e desafetos de vidas passadas, sofridas,  sem rumo, para o sempre se enfeitiçarem.
            Pelos dois, amor, três dias, mal dera para aquecer: o sol dobrou noite. No quarto dia, Livinha, agarrou Capilinho no detalhe do sofisticado e enlojou-o na soberba. Enfurnou, contínuo, em um dos salões da casa das donzelas, roleta viciada e bacará esperto para prosperarem nas maranhas mãos do capoeira. O casal, pelo fomento do social financista, passou a frequentar, enfatuado, missa de domingo, na Matriz e, pela fé e carinho, nas sextas, o terreiro de candomblé, no Acaré, de Mãezinha. Oguniê.
Ceflorence      27/12/15    email    cflorence.amabrasil@uol.com.br     

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