FANGAS E
OLÓCIOS EM ESPLENDOR DO MACAÇAU.
A última
janela, final do corredor, entre o oratório, quarto do silêncio e fantasias, a biblioteca,
sempre deixava entrar à tardinha um resto de luz melindrosa intendendo se insinuar
tais libélulas, com certo afeto místico a ser e se fazia deslizar ao além ou
invadir o imprevisto. Assim se anunciava o dia feito com o poente debruçando
sobre a solidão e o sino da capela de Esplendor do Macaçau chamando para a Ave
Maria. Rondeava, tanto por ali também, um aroma delicado de poesia colorida nos
chilreados dos pintassilgos entremeados com o sorriso espontâneo de Vó Somezinha.
Cismando, atento, se escutava baixinha
a sonoridade dolente de arco íris das asas das libélulas brincando de
melancolia. Era mesmo nesta sutileza que Tio Guanduxo apontava-me os sumiços das
libélulas ao em se indo infinitas céus afora, misturadas em sustenidos, antes
de voltar a solfejar grave, com os dedos magros sobre a partitura de Fígaro,
para apresentar-se, um incerto dia, com Maria Callas, quando o Cine Teatro
Avenida estaria lotado.
Escapava, depois de ouvi-lo, aos meus
aforas insinuados, convencido dos destinos das libélulas, mas intencionado mais
na obrigação de puxar pelo rabo Alai, gato russo, ainda com saudades de mamar e
ensiná-lo, carinhosamente, a tomar ciência das tarefas da ratazana mais velha, do
relógio de carrilhão da sala grande e da aranha felpuda tecendo delicadezas
pelos tetos inacabados do solar. Do fundo do pomar vinha um silêncio convidando
à preguiça. Os passarinhos ali nas árvores não sabiam que habitavam o prometido,
supunha.
As quebradiças paredes sujas, cada
dia uns casquilhos maiores, nos olhavam ouriçadas, pois careciam resguardar o
passado plasmando nos desenhos lapidados das goteiras refletindo abstrações e
horóscopos. Nestes astrais, Vó Somezinha penetrava com a sua alma imantada de
além, impregnada de ciência profunda e esgarçando fé do infinito. Dependendo da
forma envesgada do seu olhar pelos cantos das fantasias e das crenças com que
acordava, conseguia soletrar em braile, ela, os entrecortados nos tisnados do
porvir, pois o passado e presente, ali grafados nos reboques, não mentiriam à
evidência do advir a caminho.
Memoro se correto, estávamos na
quaresma, pois só às carnes achegava miúdo, eu, escondido e àquela manta
despencada longa do jirau, com o melhor perfume do mundo, o proibido, sabor de
pecado original, ousadia, pendurada no fundo da dispensa, com certo ar de solidão
e meditação confabulada. Para mim festiva e temperada pela dentada gulosa, vigiada
pelos olhos ladinos à porta grande, carne sensual, pontas dos pés sobre o
caixote bambo, pois se esticava bem ao alto a peça farta, afastada dos ratos,
das manias, das crianças.
Nestes torpores, os pretéritos e as andorinhas
ligeiras retornavam do infinito ao se pôr o sol, de onde traziam seus mimos para
os esparramarem aos pés d’Avó Somezinha no terraço fazendo mandriar-se cochilenta,
merecida, no terço em reza ao Vô Albargádio. Neste tempo, Tia Ancinha
atravessava dia em busca de todos os cômodos, corredores, pausadamente, repetindo
aos falecidos suas obrigações, os quartos de cada um e os cuidados para não assustarem
as formigas carinhosas responsáveis por despertarem os sois nas madrugadas.
No sobrado, a imortalidade às vezes se
distraia e escapava alguém para se deixar morrer por algum pouco tempo, mas assim
que se descuidasse voltava o falecido, fagueiro, ao armário de Somezinha, aos
passeios da Tia Ancinha, para o boa-noite do galo índio, coruja do forro, acariciar
o cachorro, beber água na bilha, amém das seis horas, ou o sim-senhor de qualquer
estranheza ou novidade que atravessasse o imaginário e a fantasia.
Foi neste mesmo outono, ano de chuvas
pesadas, roças faceiras, nhambu acanhando moroso das águas no entremeio do
ensejo preguiçoso e do pé de serra que se deram os acontecidos e ditos que
reponto. O tempo se marcava bem, o casal de fanga e olócio, de que falei, chegou
ao sobrado de forma espontânea, metódica, educada. Vieram com intenções de
eterno, alongados do pretérito até a suposição do desvelamento, ao que deduzi
pelo perfume marcante.
Passaram a se disfarçar de
inexistentes e corteses no desvão desocupado, camuflado, vizinho de uma goteira
na claraboia enxergando a lua, entre o sótão do forro mais alto, pegado
exatamente ao pedaço de imaginário incolor que circulava pelos corredores e um tom
indeciso usado para prevenir mal olhado que Somezinha guardava na terceira
prateleira do armário das maravilhas mágicas e vidências.
O primeiro olócio a que atentei tímido
e recatado, como nas demais vezes, se fazia em azul reclinado sobre a
autoconfiança introspectiva, solfejando um sombreado viscoso, elegante,
disfarçado de perplexo, nada invasivo. Punha-se ele entre os copos, taças,
talheres da cristaleira no canto do fundo da sala de jantar, muito a vontade,
tranquilo. Agitava-se sem preocupação entre as prateleiras com sua sonoridade de
estilhaços acomodando-se às peças a se fazerem sorrir estagnadas em seus
lugares, imóveis, caladas, sensuais, para recepcioná-lo. Davam a nítida sensação
de que os cristais se gratificavam com os afagos delicados e cuidadosos ao
tocá-los olócio.
A janela do meio espiava o infinito no
hábito antigo de se deixar ouvindo o deslizar suave do silêncio de uma parreira
começando a florir. Sistemáticas abelhas, borboletas, mosquitos, cirandando
suas satisfações nos entornos apareceriam dolentes vagueando desejos, tanto que
o sol aproveitou o balanço da poesia em curso e esparramou-se descontraído,
preguiçoso, sobre a mesa posta. Notei estranho que o sol antes de se debruçar
sobre a última cadeira de espaldar nobre sorriu-me como a pedir permissão pela ousadia
e intrusão. Ao ensejo do olócio presente, estes detalhes foram se imiscuindo
comigo em um só existir e não conseguia mais, eufórico, diferenciar onde começariam
os inebriados derredores e por onde afloravam minhas ideias íntimas excitadas. Pelos
segredos intangíveis fui me metamorfoseando em um nós inseparável. Senti-me entrar
pela goela melíflua indefinida do abstrato com sabor de imponderável e
transmudar o eu em enorme interjeição de nós.
A partir de então, envolvemo-nos
suavemente em uma algaravia cativante, não distinguíamos se interna ou externa,
nos autodevorando de maneira macia e percebemos um último pensamento meu, isolado,
já distante e disfarçado, prestes a alcançar as asas preguiçosas de uma
mariposa para esconder e livrar-se de conflitos. Entalamos unidos entre uma
suposição arregalada e abduzimos com a cadeira de braços que fora do Avô
Albargádio ao sentir o olócio nos encantar. Concluímos, pela forma alegre com
que o teto nos acariciou que não estaria o advento do olócio ligado ao
horóscopo do dia findo com regência de Capricórnio atraído pelo Zodíaco em Áries,
que se separara da constelação de Netuno para enaltecer a fertilidade de Peixe
advindo, conforme Somezinha confirmara à prima Mecália engravidada do oitavo
filho a nascer no final de ano.
Notamos, neste momento, que olócio
estendeu delicado e afetuoso os membros desuniformes de sua sombra elegante,
viscosa e juvenil, balançando calma e fagueira, para segurar carinhoso o
vestígio da sua fanga adentrando a cristaleira. Invadiu radiante ela, sombra
sílfide, misteriosa nuance, secreta, colar invisível tilintando mouco, melodia
silente, fragrância de pecado, sabor de desejo. Fomo-nos amalgamando àquelas
fantasias e não separávamos mais o antes do azul, os móveis da imaginação, as
teias das aranhas trinavam candentes ao sorver os pássaros, enquanto o pomar beijava
sofregamente o forro de taquara para se fundirem e, assim, coesos pusemo-nos a introverter
em um só êxtase às paredes sensuais.
Nosso alongamento sala deu-se encolher
ao fundo, como braço suave se curvando delicado, tal se portam os sonhos para
não fugirem do inconsciente, e nos permitimos desvanecer acompanhando as
sombras se aconchegando. No mesmo movimento, nossa integração cristaleira, respeitosa,
debruçou-se sobre o aparador para facilitar a descida da fanga e do olócio
sobre tábua furada que se envaidecia e se inteirou para os ruídos assombreados
deslizarem mansos tais brisas que a tarde trazia. Na medida em que cruzavam nossos
espaços as sombras delicadas, as formas dos moveis, objetos retornavam às suas
individualidades, as paredes sorridentes reassumiam suas imponências eternas,
não antes de se contorcerem para ajustarem os reboques, as poeiras, a preguiça
sobre o eterno.
Fanga e olocio, com graça e melindre,
irromperam nossa perplexidade, exalando indefinidos silêncios perfumados e dispuseram
em nossas mãos curiosas uma única colher miúda de dúvida. Não tinha sabor,
cheiro ou cor, mas nos sabia altamente suspeita para o uso sem orientações
precisas de Somezinha. Ao deixarem a pequena amostra de dúvida, foram
morosamente se despedindo do integrado, nós, e retornaram olócio e fanga pela
cristaleira, que se ajoelhou delicada para galgá-los às hipóteses ou às
alternativas que os indeterminariam. Olhei o redor e os objetos, sons, os silêncios,
imaginações volviam impertinentemente ao estável insonso, imutável convencional,
como fossem alegrias desajustadas, tristes. Abandonaram-me cruelmente
incompetente com sabor de orfandade deprimida. As lúgubres cadeiras de braços, em
suas imponências eternas, destroçando sobre as tábuas puídas plasmaram circunspectas,
como se impunham existir, e eu, indefinido, choraminguei tal qual permitido, dedilhando
a dúvida na palma da mão sem saber ao que destinar.
Procurei o quarto de Somezinha,
ansiedade abraçada escada acima, degrau, degrau, ansiedade. Bati baixinho na
porta larga de duas folhas com a mão vazia e segurando a isca de dúvida na
outra, cuidadosamente. Somezinha continuou um tempo mais no oratório conversando
com o falecido Vovô Albargádio, como me disse ela, pois vinha ele prudente ao
anoitecer para deixarem o silêncio os acarinhar, sossegados, antes de agasalhá-lo,
pô-lo a dormir. Depois de beijar-me, doce, perguntou o por quê do olhar de
socorro. Mostrei-lhe a pitada de dúvida no centro da palma da mão e contei-lhe
os detalhes da visita da fanga e olócio, as movimentações das cristaleiras,
sons, pensamentos, paredes nos incorporando em uma só deliciosa alucinação
inebriante. Chorei novamente por ter sido abandonado à minha incompetência
naquela sala de realidades indiferentes, tristes, concretas. Vovó apertou
delicada minha mão, fechando-a sem mais olhar.
- Enásio, menino, hoje se deixou vir
em arrebatamento à segunda essência que governa o absoluto, os astros que regem
do infinito à nossa insignificância. A primeira foi o desejo, tão logo concebido
por seus pais, a segunda a dúvida, que vem com a maturidade, para o bem e para
o mal. Veio a você nesta metamorfose entre você e incomensurável entorno, pois
tudo ocorre como uma só consciência no seu existir, no pensar. No momento que
colocou o todo em eu sentir, o seu sentir, pensar era o todo.
A dúvida chega a cada um de forma
muito especial. Quem criou o cosmos pensou em detalhes. Tudo é envolto no êxtase
existencial por estes dois fundamentos, desejo e dúvida. O resto são detalhes
decorrentes. Se a dúvida antecedesse o desejo o próprio Criador poderia não ter
idealizado o cosmos, a terra, a vida. Imagine se ele preferisse o nada ao ter
dúvida no seu desejo.
Chegue pelos tempos infinitos a você
mesmo, que ficaria desesperadamente em dúvida se preferiria nascer ou se
eternizar no útero indefinidamente com sua mãe. Duvidaria se deveria mamar ou
ouvir o sorriso dela. Os homens se fazem em desejos de se tornarem Deus, mas
duvidam como. Sofrem entre a dúvida a escolher, amor ou ódio, guerra ou paz,
afeto ou solidão. Tenho eu dias vários desejos infinitos que minhas rezas,
bênçãos, vidências prosperem, se eternizem, mas tenho dúvidas e sofro até que
se rebrotam. Pense na dúvida de Guanduxo se Maria Callas virá a Esplendor do
Macaçau. E nas dúvidas de sua Tia Ancinha se as formigas não despertarem o sol
ou os mortos resolverem migrar para outros aléns.
Só você poderá balancear suas dúvidas
e seus desejos. É a vida, eu estou em dúvida de uma alegria triste profunda se
lhe dou um beijo porque você se emancipou ou se acabrunho porque vai se
alimentar da imensa angústia que é de decidir sempre entre as liberdades que as
dúvidas lhe trarão para escolher sempre. Vá dormir. Vou ver se Albargádio está
dormindo mesmo, pois à noite duvido às vezes se ele preferiu morrer sozinho em
algum além.
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