DOZE SILÊNCIOS E UMA
SOLIDÃO
A
matriz, sem soberba, ao contrário, modesta, ao longe, espionando o sereno
envolvente se enlaçar carinhoso sobre o casario da vila, atenta à captura da
madrugada vestida de zodíaco e encantada de libido, debruçou depois das doze
badaladas sobre o azul e se fez por receber novo dia. Ainda absortos, Lecihá e
eu, esperávamos o nada se despir para nos dedicarmos ao ócio. Ela, com os
lábios escorregadios, mimos tentados, olhos desfilando um aconchego sensual, beijou-me
mole, certo aroma suave do vinho, mas meticulosa, enfeitada. Sorrimos! Notei-a,
com afeto, a espreitar a porta do fundo, enquanto obrigou-me a acompanhar seus
seios arfarem entre a camisola de seda, sem definir se esvaiam sensualidade ou inquietude.
A seda foi inspirada pelos chineses para ser desnudada, nunca composta. A seda
é o instante em infinito. Nada desvanece mais a fantasia do que a seda despida,
mansa. Devaneio em transe. Jamais permitida cair sem sutileza, espaço, sonho,
pois é seda.
Do
vazio, daquela direção em que os indefinidos eram mais suspeitos, escorregou
uma golfada sistemática e invasiva de ruído, irritante sem dúvida, e permeou
entre nós. Adiantou-se o som imprevisto e indesejado com o intuito perverso de
quebrar o silêncio a que nos acomodáramos de mãos dadas e lábios irrequietos. Infiltrou-se
o barulho camuflado e cabisbaixo pela porta que separava a biblioteca da sala
de jantar. Desacomodou, intencionalmente, nossas atenções, afagos, afazeres. Postou-se
invasivo entre a garrafa de vinho, o abajur de pé direito alto colorido, rosa,
e uma edição da divina comedia entreaberta. Não conseguimos atentar, apesar dos
seios de Lecíhá terem retornado ao repouso plácido, libertos da minha insinuação,
pois no intervalo nos invadira certa forma estranha de ansiedade alvoroçada pelo
ruído forte infiltrando-se saleta adentro. Não haveria razão para tal, visto
que o cômodo pelo qual adentrara, ganhava unicamente o jardim das petúnias, onde
só chilreavam os canarinhos durante o dia e as tristezas murmuravam em noites
de luas cheias ao se amasiarem ali com as serenatas. A angústia, nossa, naquele
momento, arrastava consigo um pedaço rústico de medo, envolto numa película de
curiosidade. “Não há dúvida”, lamuriou Lecihá, “voltou e teremos de repetir o
ritual”. Tomamos da garrafa de vinho, apagamos o abajur e fechamos a divina
comédia, embora inconformada.
Ganhamos
o jardim, pelo terraço da frente, levando a garrafa e a chave da porta
principal. Sentamo-nos no gramado, ao lado do vinho e da solidão. Acompanhamos
o ruído atravessar a sala de jantar, ganhar o hall, manter os cômodos no escuro
e subir ao nosso quarto para acender a luz da cabeceira. Ali lançou, o ruído,
sua sombra tristonha pela janela e cumprimentou a badalada da meia hora do dia
começando. Metódico, apagou a luz do abajur e começou a indefinir-se de mãos
dadas com o silêncio após descer as escadas. Ao deixarmos o jardim, no escuro,
Lecíhá e eu, escutamos o silêncio retornar acomodado à poltrona da biblioteca,
após despedir-se do ruído saindo pela porta do jardim das petúnias. Beijamo-nos,
enamorados, portas abertas permitindo-nos ver nossas melancolias brincarem
entre dois castiçais sobre o piano fechado, mudo, sem ruído. O relógio da
matriz perguntou a hora à seda despida.
Ceflorence 01/05/17 email
cflorence.amabrasi@uol.com.br
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