quinta-feira, 8 de junho de 2017

DOZE SILÊNCIOS E UMA SOLIDÃO
A matriz, sem soberba, ao contrário, modesta, ao longe, espionando o sereno envolvente se enlaçar carinhoso sobre o casario da vila, atenta à captura da madrugada vestida de zodíaco e encantada de libido, debruçou depois das doze badaladas sobre o azul e se fez por receber novo dia. Ainda absortos, Lecihá e eu, esperávamos o nada se despir para nos dedicarmos ao ócio. Ela, com os lábios escorregadios, mimos tentados, olhos desfilando um aconchego sensual, beijou-me mole, certo aroma suave do vinho, mas meticulosa, enfeitada. Sorrimos! Notei-a, com afeto, a espreitar a porta do fundo, enquanto obrigou-me a acompanhar seus seios arfarem entre a camisola de seda, sem definir se esvaiam sensualidade ou inquietude. A seda foi inspirada pelos chineses para ser desnudada, nunca composta. A seda é o instante em infinito. Nada desvanece mais a fantasia do que a seda despida, mansa. Devaneio em transe. Jamais permitida cair sem sutileza, espaço, sonho, pois é seda.  
Do vazio, daquela direção em que os indefinidos eram mais suspeitos, escorregou uma golfada sistemática e invasiva de ruído, irritante sem dúvida, e permeou entre nós. Adiantou-se o som imprevisto e indesejado com o intuito perverso de quebrar o silêncio a que nos acomodáramos de mãos dadas e lábios irrequietos. Infiltrou-se o barulho camuflado e cabisbaixo pela porta que separava a biblioteca da sala de jantar. Desacomodou, intencionalmente, nossas atenções, afagos, afazeres. Postou-se invasivo entre a garrafa de vinho, o abajur de pé direito alto colorido, rosa, e uma edição da divina comedia entreaberta. Não conseguimos atentar, apesar dos seios de Lecíhá terem retornado ao repouso plácido, libertos da minha insinuação, pois no intervalo nos invadira certa forma estranha de ansiedade alvoroçada pelo ruído forte infiltrando-se saleta adentro. Não haveria razão para tal, visto que o cômodo pelo qual adentrara, ganhava unicamente o jardim das petúnias, onde só chilreavam os canarinhos durante o dia e as tristezas murmuravam em noites de luas cheias ao se amasiarem ali com as serenatas. A angústia, nossa, naquele momento, arrastava consigo um pedaço rústico de medo, envolto numa película de curiosidade. “Não há dúvida”, lamuriou Lecihá, “voltou e teremos de repetir o ritual”. Tomamos da garrafa de vinho, apagamos o abajur e fechamos a divina comédia, embora inconformada.
Ganhamos o jardim, pelo terraço da frente, levando a garrafa e a chave da porta principal. Sentamo-nos no gramado, ao lado do vinho e da solidão. Acompanhamos o ruído atravessar a sala de jantar, ganhar o hall, manter os cômodos no escuro e subir ao nosso quarto para acender a luz da cabeceira. Ali lançou, o ruído, sua sombra tristonha pela janela e cumprimentou a badalada da meia hora do dia começando. Metódico, apagou a luz do abajur e começou a indefinir-se de mãos dadas com o silêncio após descer as escadas. Ao deixarmos o jardim, no escuro, Lecíhá e eu, escutamos o silêncio retornar acomodado à poltrona da biblioteca, após despedir-se do ruído saindo pela porta do jardim das petúnias. Beijamo-nos, enamorados, portas abertas permitindo-nos ver nossas melancolias brincarem entre dois castiçais sobre o piano fechado, mudo, sem ruído. O relógio da matriz perguntou a hora à seda despida.
Ceflorence    01/05/17          email   cflorence.amabrasi@uol.com.br    

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