DENÚNCIAS DOS INTOCÁVEIS.
Era um
fim de jornada, dura, sem provérbios ou insinuações, e meus frangalhos se
preparavam para acabar de limpar as sobras do dia deixadas pelas visitas no
Museu de Arqueologia. Estirei-me, cansado, naquela noite fria, sobre uma pedra lisa,
porte de um adulto médio, aonde se lia: “-Pedra da Paixão – Constava da
tradição Híctia que nos dias dourados, dos anos dos desejos, fundamentados nas
fazes exotéricas das luas, permitia-se às deusas levarem os crentes às fantasias
amorosas para quem se abandonasse em sonhos sobre os carinhos de pedras como
esta”.
Segundo
os imaginários Híctios, os princípios dos prazeres seriam reproduzidos cravando
que a beleza do infinito deveria ser esgarçada entre os amantes que se
amalgamassem nos deleites das pedras das paixões. Sob as nuances das deusas do
amor, as pedras absorviam os efeitos das paixões e quem sobre elas repousasse, viajaria
entre infinitos sonhos e fantasias como só ocorreriam aos bem aventurados nos momentos
dos orgasmos ideais.
Antes
de lançar as afirmações, que li com carinho, à vala comum do absurdo, lembrei-me
que várias crenças expressivas em fé e convicção jogam com imagens semelhantes.
Beatifica-se, encarna-se, consagra-se e sacraliza-se, sobre inumeráveis objetos
e pessoas as paixões e os ódios. Mas aquela colocação da pedra, além de
interessante, era bastante criativa, convenhamos. Enfim, por ainda pendentes de
definição os aleatórios infindáveis da teoria quântica, não se deve ser cético jamais.
Simultaneamente
à leitura passei com muita calma a alisar a pedra, para limpá-la, como faço com
todas as demais peças do museu, com tranquilidade e carinho. Os movimentos
sincopados da mão que a alisava, a releitura e o cansaço da madrugada,
alienaram-me completamente, não sei se para um sonho, uma hipnose ou uma
alucinação fantástica. Brotou então do infinito, envolvendo-nos, a pedra nua e
eu, como sendo alvorada de desejos, nuvem azulada etérea que nos transmutava em
voo sereno e constante, para um apocalipse sensual e nos arrebatando em amor,
paixão, sensualidade, desejo, carinho, prazer. Transmudamos envolvidos nas
fantasias mais saborosas e eróticas. Talvez nem a morte, com a alegria do
encanto dos anjos, fosse tão efervescente. O sonho se encarnava em total
realidade do descompromisso absoluto e o que se atribuiria a censura se
transfigurava para o êxtase da virtude. O mundo surrealista efervesceu em meus
êxtases e sumi completamente no indefindo. O cosmo nos devorou. Paixão e desejo
aglutinaram-se em massa disforme, explodindo fantasias orgásticas até que o sol
calhorda da realidade, pelos vitrais do além, despertou-me da luxúria agarrado à
pedra. Nós nos beijávamos.
Assustado,
sem saber por onde ser e onde estava, arrebatei as angústias e os panos de
limpeza, fugi pelo canto aberto da esquizofrenia. Não separo, até agora, se o
pavor ou o alento de agarrar a explosão vasta da nuvem azulada, que se
esvanecia para o eterno, seria o meu objetivo ébrio ou minha demência chegando
a cavalo.
Poderia
ter criado, sonhado ou imaginado tudo. Mas até agora ouço, ao distrair-me, só,
uma voz petrificada perguntando do silêncio. - Você volta?
Ceflorence 07/06/17 email cflorence.amabrasil@uol.com.br
Mais uma bela crônica, digna de aplauso e admiração pelo talento do autor.
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