quinta-feira, 20 de outubro de 2016

CEM ANOS DE GRANDES SERTÕES.
À mesa grande, desconjuntada, sentado na sala da casa velha ruindo, pelo mesmo lado que o morcego solitário, indeciso, se encantava com a coruja ao lamber, molenga, suas mazelas e tristezas na cumeeira, não via eu mais do que a prateleira carunchada da estante caindo e desacomodando desordenada pilha de livros largados. Na fileira do meio, obras desajustadas ao dará, acompanhava eu a tábua torta sob o peso e o tempo, alongando-se para me chamarem atenção os dois últimos exemplares. Estilhaçados, se enrolando umedecidos, exibiam-se ali do fim da fileira - Guimarães Rosa - Grandes Sertões: Veredas e Gabriel Garcia Marquez - Cem Anos de Solidão. O destino ou o desejo, nunca apuro por preguiça ou rabugice, roçou pelas minhas pernas e segui o rato mais antigo do sobrado, sem questionar, subindo pela prateleira do meio e, requebrando faceiro, retornar provocativo, fitando-me, atrevido e enfeitiçado, assentando-se ele sobre Guimarães e Garcia Marquez.
            Fantasiei desafios dos aléns apontados pelo roedor sênior. Arrastei-me à estante e puxei Grandes Sertões, que trouxe compelido, atadas às suas entranhas paginadas, Cem Anos de Solidão. Joguei as peças assustadas, carência de manuseios há anos, sobre a mesa e garimpei Guimarães, para rever saudoso o Riobaldo, das guerrilhas labutas, se aloprando indefinido, machista e perdido nos tormentos afetuosos inexplicáveis do seu fascínio confuso por Diadorim. Nas refregas das capoeiras, sob o silvado das carabinas baleando, volteei às lutas dos sertões. Atordoei plasmado, no entanto, pois os percevejos embaralharam os caminhos das palavreadas tramoias para jogarem os atribulados Diadorim e Riobaldo, depois de cortarem atirando pelas quiçaças mineiras, serem pegos invadindo, pelos trilhos da Estrada de Ferro da Companhia Bananeira, os fundos do Quartel de Macondo aonde o Coronel Aureliano Buendia se preparava para enfrentar o batalhão de fuzilamento. Por ordens do governo central o executariam de pronto, não fosse a oportuna chegada do grupo chefiado por Riobaldo, escapados dos sertões de Guimarães e irrompendo de supetão na cena da estória florida de Garcia Marques. Assisti assim, sob os beirais ruindo, por lampejos criativos dos percevejos rebeldes e revisores, versão outra do original.
Em resposta inusitada, graças às grafias novas dadas pelos percevejos surrealistas, o Coronel Buendia, exibindo o peito enorme nu, tatuado, tomou um dos fuzis dos executores do pelotão e se arremeteu contra os jagunços das gerais, enaltecidos por Guimarães e bradando furioso espanhol – hijos de unas putañas, Garcia Marquez mi arriba desta loucura de libro sien direction! Ursula repôs sobre a mesa capenga as garrafas de cachaça e tequila a tempo de ouvir Garcia Marques mostrando para Guimarães, no mapa das liberdades literárias, a trilha das fantasias por onde as Gerais das agruras se achegavam ágeis à Macondo das quimeras surpresas. Diadorim, o coronel e Riobaldo se entreolharam com as garrafas portadas, estupefatos - seriam personagens, eles, do realismo fantástico ou os gênios criativos endoideceram?
O rato velho sussurrou para espacearmos, pois a magia empolgada dos escritores e dos personagens mastigava a realidade pretensiosa, insossa e inútil ali.
Ceflorence    09/10/16        email    cflorence.amabrasil@uol.com.br

3 comentários:

  1. Prezado Sr Florence.. A sua maravilhosa "mistura" de Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Marquez me fez esquecer por completo a obrigação de escrever algumas linhas sobre o futuro do mercado de TSP. Cheguei mesmo a sentir uma ponta de inveja do ratinho na estante de livros...No fim do dia certamente irei revirar as minhas prateleiras atrás de Riobaldo, Diadorim, do coronel Aureliano Buendia e de ùrsua e vou me dar ao "desfrute" de alternar a leitura de páginas de um e de outro. Muito obrigada por ter me dado essa ideia!!! Um cordial abraço....

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    1. Sra. Marcia, é uma alegria saber que a senhora motivou-se a revisitar os nossos amigos e inspirações dos sertões do Guimarães e dos caribes do Garcia Marques. Ótima leitura, vale a pena.

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    2. Sra. Marcia, é uma alegria saber que a senhora motivou-se a revisitar os nossos amigos e inspirações dos sertões do Guimarães e dos caribes do Garcia Marques. Ótima leitura, vale a pena.

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