quinta-feira, 14 de abril de 2016

REFLUXOS
Pela pequena fresta da janela, uma réstia suave de luz invadiu o quarto em desordem, encostou-se ao ouvido de Marzilinha, avisou-a que Rútilo se fora. De imediato, o feixe claro beijou-a, afetivo, nos seios descobertos e deitou-se de bruços para ouvir a solidão. Ela inverteu sua posição na cama, abraçou o travesseiro, rememorou, dormitando preguiça, a noite gratificante com o namorado, após chegarem apaixonados e excitados da boate. Deu-se cinco minutos mais de pasmaceira antes de iniciar o dia, provavelmente a ser atribulado. Finalizado o espaço inapelável para os compromissos inadiáveis que teria, restou sentar-se na cama, vagueando os pés a cata dos chinelos.
Só levantada, no entanto, se deu conta do fato, ao sentir o pé esquerdo menor, algo assim como uns dois centímetros, do que o direito. Os ombros, todavia, continuavam, aparentemente, nas mesmas posições relativas. A primeira reação foi olhar para os chinelos e verificar as suas espessuras, mas confirmou, preocupada, permanecerem como sempre. Em seguida observou, cuidadosamente, o chão, a cata de uma falha, absurda se constatada, e certificou contrariada da normalidade das lajotas cinza, escolhidas com carinho na reforma, para combinarem com a cama e os armários embutidos, suavemente tendendo ao azulado. Ratificou-se a situação esperada, não havia no porcelanato qualquer deslize ou anormalidade. Cuidadosa, claudicando, claramente acabrunhada, entrou no banheiro enquanto apalpava todas as demais partes do corpo, pesquisando alternativas outras, eventuais, de mudanças inusitadas.
            Frente ao espelho, nua, a primeira reação natural foi olhar os pés paralelos, aproximados, e confirmar que efetivamente estavam diferentes, embora as pernas continuassem torneadas, lindas e iguais. Ansiosa, subiu meticulosamente os olhos pelo corpo refletido, contornando as linhas dos quadris atraentes e deslumbrou o ventre exato e perfeito desenhando, com sensualidade, as saliências das próprias formas. Contraiu as nádegas firmes, roliças, adequadas e proporcionais à sua altura, para testar eventual dor, capacidade de movimentos ou impedimentos. Normais todos, até então, os órgãos esculpindo sua silhueta, que vaidosamente a agradara sempre. Respirou fundo, acabrunhada, indecisa. Traçou o mapa das orientações que teria de programar para apoio futuro. Surgiu Rútilo, a primeira lembrança lógica e afetiva. No entanto, ao mesmo tempo em que considerou carecer demais sua atenção, pairou a angústia e a vaidade de exibir-se transmudada, sem saber o limite. Hipóteses sucederam-se.
Antes de definir-se, optou levantar as vistas até os seios roliços e verificou, consolada, estarem enfeitando o busto que sempre exibira com merecida e invejável petulância. O pescoço, sem qualquer marca de tempo, de sofrimento ou tensão, deslizava, sutil como sonho, para gratificar a junção com que a natureza unira seu corpo ao rosto exótico e incomum, mas acima de tudo, atraente. Encerrando o autoexame, ao se detalhar sobre a face, Marzílinha apavorou-se, pois os dois centímetros, faltantes no pé, se acrescentaram à orelha esquerda, que maior, sem alternativa, pendera com fisionomia de descompasso. Involuntariamente à Marzilinha, o ouvido movia-se, em gesto afetuoso, acenando fixo para as lágrimas que começavam a correr dos seus olhos angustiados. Tentou apalpar sobre o espelho a orelha alongada, mas notou que o braço esquerdo encurtara e sobre ele e a mão direita nascera uma membrana escura, coberta com algumas penugens escamadas, emendando os dedos como os dos marrecos do laguinho da infância.
O pavor lambeu as lágrimas, subiu sobre o descontrole de Marilzinha, atacou-a com beiços encarnados e a deixou fora de si. Alucinada, inconsciente, voltou ao espelho e vê, deslumbrada, a orelha normalizar-se à medida que as pernas se enquadravam, as penugens regrediam e as películas sumiam. O reflexo reflexivo do espelho passa a comandar. Tão logo se conscientiza, se tranquiliza, as metamorfoses, explodem arrogantes em Marilzinha. Desesperada, inconsciente, o pavor reassume, paradoxalmente as magias se retraem e o corpo enlouquecido se refaz normal.  Ágeis, as metamorfoses se recolhem ou implodem.
Pelas paredes do banheiro Marilzinha assiste, extenuada, sua orelha autônoma tentar devolver à perna seu excesso de porte. O espelho conciliador procurava anistiar o conflito do consciente com o inconsciente e estabilizar, no ódio, o corpo inconstante. Marilzinha estimula a loucura para devorar a metamorfose. No jardim, a incoerência ouve o beija-flor despedir-se da crisálida ao preferir brincar de borboleta despreocupada.
Ceflorence     04/04/16    email cflorence.amabrasil@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário