CONTO DE MEMÓRIAS BOAZINHAS E UM
ALENTO GORDO
E por assim como
se deveriam bem tecer os desejos, sem duvida, desejo, a maior ganância pedida
aos aléns, repetiram se igualados os embalos dos cantos rimados para contar as
estórias da menina meiga, Acaué Cangutá, nativa índia mimosa das nascentes do Cantiaparó
Açu. O vento então parou para ouvir o aroma macio e peralta dos sons adocicados
em fá maior das primeiras estrelas espreguiçando vadias por trás das nuvens escorregando
pelas brisas que Obolum Oró lançara ao acaso para criar melhor o mundo das
coisas, dos espíritos, dos homens. E os imprevistos se deram desde então dos
começos até o brotar do cair da noite depois que o pai carregou carinhoso a
filha para os embalos de agarrar-se no sono em rede de cipó atada, de um lado,
no silêncio e, do outro, na solidão, como tão bem se davam as coisas no canto fundo
e quieto da oca grande. Ali até o tempo era vadio escorrendo entre os segredos da
mata fora, escura, onde moravam os medos, bichos bravos, as dúvidas e se deu da
menina a procurar suas melancolias de criança nas veias da preguiça para chamar
os sonhos. Sorriu para si mesma no destino de encontrar, sempre como eram tão
iguais as suas noites, noites a se fazerem a ela nos gingados dos devaneios
esquisitos, saboreando seus desejos camuflados, cuidadosamente, sob o rolo aconchegante
de paina, com que a avó nhãmbiquara lhe ensinará a devanear, bem devagar. E se
punha a menina a colher nas confusões das suas imaginações travessas, tropicando
na algazarra muito grande da escuridão apagada nos buracos fundos do céu imenso,
onde os deuses cozinhavam as ideias esquisitas para mandá-las embrulhadas em
pensamentos irrequietos durante as noites para as cabeças criadeiras das gentes
pequenas dos fundos das florestas como Acaué.
O primeiro desejo serelepe a sair do emaranhado
macio das painas da avozinha Acaué Tiroga, puxando consigo os demais pedaços compridos
das fantasias a cata dos olhos alegres da menina, não era ninguém menos do que
o Kauiãm, sua maritaca dourada. A maritaca entrava pelo imaginário no sumir do
sol, justo com a brisa da noite, no cair do sereno e do sono. Bolinava a
avezinha atrevida o silêncio, escondia o medo, subia pela ternura, mordiscava
as cócegas das dobras das orelhas para deixar ouvir até muito longe o canto
inteiro do barulho da solidão para os animais amansarem. Durante o dia a
maritaca era verde, despia o dourado, subia pelos galhos, jamais pelas orelhas
e se fazia muda e gritadeira, enquanto a mãe raspava a mandioca, o pai caçava e
a avó ensinava a Acaué as tramas das ervas boas para colher, quebrar as ruins
para morrerem, trilhar os caminhos das imaginações, escutar a marola do rio
antes dele dobrar abaixo depois da curva onde se escondiam os perigos. E assim
se punha ela a aprender a ver no fundão das lonjuras o grito triste do Boitatá,
ouvir a beleza de Iemanjá, sentir o resfolegar do Caipora, respeitar os ruídos dos
receios, os sinais dos coriscos trovoados e, como bem ensinava a avó querida,
os rastros dos caminhos da seriedade para virar mulher lá na frente, quando, no
talvez, fosse ela adulta e chata.
A passarinha dourada de Acaué, na sua
noite de rede calada, desmilinguida em solfejos irrequietos e moleques, se
punha sempre a brincar de sumiço e feitiço, antes de escapulir da magia que as
painas e as ideias escondiam. Dava somente as vistas Kaiuãm desenrolando dos tortuosos
meandros dos azuis das confusões pensadas da menina encantada nos seus mundos de
sabores fantásticos maturados nos aléns. Nisto, Acaué, nos torvelinhos da maritaca
atrevida, sumida, se agitava irrequieta, choramingava baixinho para o seu
coração só, na cisma, e no embalar da manha de chamar as preguiças enroscadas
para agadanhar o sono e não acordar as reprimendas ranzinzas dos adultos zanzando.
Sabia que em não vindo a avezinha fugidia das fantasias, não se abririam os
entremeados dos desfiles gostosos balanceando as fascinações dos desejos outros
aconchegando afetivos para conseguir ela tecer piscando, mole-mole, os embalos
do sono teimoso, com afago nas painas fofas e a imensidão sem fim da solidão do
escuro.
Dos receios
e das trevas, só depois de Kauiãn Dourada se apresentar formosa, rompendo em garbo,
nos seus gingados de maritaca, pelo assovio calmo da brisa mascando as
palmeiras caladas, trazendo o prazer do balanço ritmado na rede da menina
ouvindo o grilo Saboinha trinando bem longe, lá no fundo do ermo vazio, de onde
o infinito, cabisbaixado, se preparava para voltar e buscar a saudade, que se
atrasara por teimosia. Os demais desejos iriam se aconchegando. Assim, também, o
desejo amigo do sapo gordo de ancas largas, sorriso aberto, afeto amplo, gestos
prudentes, voz pontuada e inteligente, contava a mesma estória de sempre. Estória
dela menina, nhãmbiquara, que voava sobre as águas agitadas das corredeiras do
Rio Cantiaparó Açu, desviando das árvores grandes, cortando a neblina da
madrugada, escondendo-se entre as pedras altas. Ela, no correr das fantasias, cantando
do alto para as flores se oferecerem abertas aos colibris ligeiros. Se davam as
rimas no tempo certo do seu sono despencando vagaroso das estrelas, rompendo cuidadoso
pelos trançados dos sapés dos forros, acomodando aconchegante entre os cipós e
embiras das amarras. Assim era por se dar, nos abeirados das margens brancas das
areias fofas do rio bonito de tão perigoso, onde as garças, paturis, os socós,
jaçanãs, os guarás se espreguiçavam antes das cataduras dos peixes agitados. E ali
a menina Acaué se esparramava, descida alegre dos voos libertos, se acomodava
no balanço do devaneio tranquilo da piroga azul rompendo as fascinações das aguadas
campeando no cicio da cigarra esperando a lua despontar para derrubar, mansa,
os cachos de sonho que colhia sempre nas rodilhas de melancolia escondidas nos
firmamentos.
Como sempre
se dava desobediente, atrapalhado e irrequieto, foi adentrando pelos olhos
piscando para encontrar seus caminhos, o sonho faceiro como as painas macias
dos enrolados da avó e suave como aconchego. Trazia atado, o devaneio preguiçoso,
todos os desejos irrequietos, alvoroçados, confusos, da menina. Despontava a
imaginação pelo beiral de um correr de alegrias floridas, acompanhando a
mariposa agitada, azul, cirandando entre os dentes compridos da jaguatirica
lambendo o filhote recém-nascido, procurando já, afoito, os mamilos entumecidos
da mãe parida. Também, sobre a vontade da índia criança mastigar um sapoti
maduro, o sonho do desejo deixava galopar o macho atrás da gazela sumindo entre
as nuvens dos espigões e levando nas costas bonitas as cantorias e algazarras
das araras alvoroçadas rumo ao destino desconhecido de Obolum Oro, criador e
protetor dos insondáveis.
O murmúrio chegou calado para fechar,
carinhoso, os olhos, por uma noite inteira, de Acaué, que deixou a mão direita continuar
ensinando às painas os caminhos dos desejos e a esquerda levou o dedo mais gordo
para se esconder medroso na boca pequena, dos dentes brancos, da menina sempre.
A rede ressonou silêncio e pediu à noite carinho.
Ceflorence 29/07/19 email
cflorence.amabrasil@uol.com.br
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