sexta-feira, 27 de abril de 2018


SALVAÇÕES, PECADOS E NOSTALGIAS.                                                 

                        Quem deu notícias na boca da solidão àquelas horas da noite, repetidas badaladas, foi o sino da matriz, escutando Cadinho, retirante e catador de rejeitos, conversar com Simião, mais os pombos arrulhando em suas voltas miúdas. Liau sonolento, mastigando suas fomes, aos pés do sucateiro, entremeados juntos aos destinos espalhados em roda, santos na igreja, chafariz na quietude, postes apagando, vitrais góticos cismando lamber os céus, e, por desfeita carinhosa, a brisa suave espionando o chiado e o burburinho do silêncio. O luminoso da Pensão Nossa Senhora das Boas Dádivas acabara de ser desmerecido. Senhora respeitada de seus destinos e decisões, Cafetina Merinha, pontual, procedeu pôr fins nas tarefas, satisfeita das manobras e tranquilidades do dia corrido, desamuada das obrigações e impertinências, ajoelhou-se respeitosa aos pés da Madalena Santa, protetora das moças carinhosas, agradeceu às graças do senhor, à praça, à vida tranquila das venturas, que mais uma noite lhe dera.
                        Muito penhorada de alegrias e responsabilidades cumpridas, Merinha, sem remorsos ou desfeitas por consciência exata dos alinhamentos justos com as purezas, abnegada, rezou, dormiu como sabia. Cadinho amenizava as solidões próprias nos limites dos seus tracejados de carvão, pés sublimes dos carrilhões e vitrais, protegendo suas gentes, angústias, dúvidas. Um carro de polícia desconhecido, diferente dos normais guardas que exploravam todas as madrugadas o entorno da matriz, as meretrizes, traficantes, cafetões, tradicionalmente, para colherem seus subornos, coitos ou drogas, parou para averiguar o que poderia usufruir. Ensaiaram os estranhos policiais as agressões e petulâncias de rotina, pedindo referências, documentos, motivos para o catador abandonado, conversando com seus fantasmas, protegido nos escuros das paredes das torres, ouvindo os embalos dos sinos. Cadinho levantou os braços, silenciou, deixou de lado os desaforos menores, engoliu os maiores, aconselhou-se com o cigano revoltado. Os guardas viram que não haveria dinheiro, muito menos maconha ou outros interesses para serem extorquidos, chutaram o cachorro, espantaram os pombos, cuspiram e pisaram em cima do Cigano Simião, agitando seus orgulhos, por não aprenderem a vê-lo em alma ao lado do amigo Cadinho, pronto para defender o carroceiro. Riscaram os pés com seus coturnos sórdidos sobre os carvões abençoados, ligaram a sirene prepotente, deram a diligência por realizada, tão logo anotada no bloco inútil de ocorrências. Cadinho livre das contrafeitas arrematou suas tristezas.
            O chafariz esperou o silêncio se acomodar para levar suas águas para descansarem. As pombas recolheram seus arrulhos e se esconderam nas melancolias. As sete luas de obobolaum não souberam fugir dos seus destinos, mas tiveram de aguardar o sol se espreguiçar antes de se permitirem recolher em seus silêncios. Deus abençoou com sabia a madrugada e se preparou para esperar os homens acordarem, começarem a pecar e ele se atribular em perdões para não perder seus rebanhos. Coisas dos aléns, dos tempos e dos sacramentos.
Ceflorence      27/03/18       email   cflorence.amabrasil@uol.com.br       

Um comentário:

  1. Prezado Sr Florence,
    Obrigada por brindar nos brindar com mais uma crônica belíssima, na forma e no conteúdo, como é o seu estilo.
    Um cordial abraço.

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