VELÓRIO EM ITACIÁRA DAS CONJURAS E UM
ADEUS.
Além
das tradicionais coroas de flores, eram quatro as usuais velas em torno do
caixão sofisticado, preto, requeimando nossos passados, do morto e meu, exalando
incenso e cera, confundindo-se com o embalo da morte, carregando um tempo confuso
de memórias esparsas, escorregadio, e mesmo se perdendo até pelos escaninhos da
minha insensatez pessoal. Sofreria eu? Desvalido, perguntei ao inconsciente. Não
quis ouvir a resposta da demência. Tentei racionalizar as emoções ou emocionar
os raciocínios. Debalde. Confuso, me
perdi tanto na ida como no azul. Não me fiz racional enquanto dormitava no
fundo da sala e apurava lento se a depressão seria pela morte do amigo, que
partira ou pela vida minha, que continuaria? Perversa intimidade, miúda, olhava
eu o teto pintado da capela, sem enxergá-lo, disfarçando a teimosia e a ausência
de traquejos para o momento.
Ruminava
estes dessabores ao medir exatamente as minhas intimidades mais fundas depois
que vasculhei os olhos fechados do amigo Acalício Bonato Fiquio, Licinho, refeito
em defuntas formas amortalhadas, enflorado em braços cruzados no caixão negro,
gravata inusitada, narinas algodoadas, parceiro de encantos, brigas, desencantos,
delírios, vida inteira ida, ali morto ele, como se dera a ser e ficara. Licinho
nascera para objeto contumaz de meus contraditórios, recalques e conflitos pessoais.
Por mero descuido das causalidades nos tornamos afeiçoadamente arrelientos amigos
íntimos, dentro da maior inimizade afetiva, inseparável, camuflados trejeitos fingidos,
fraternais despeitos, invejosos disfarces, aconchegantes interações cínicas. Coisas
das idiossincrasias humanista ou humanitárias das convivências. Nos limites das
contradições éramos realmente unitariamente paradoxais. Invejei, sobremaneira,
como primeira recordação, a bicicleta que ganhou quando me deram um cavalo de
pau idiota, que não serviu nem para estragar o aro da sua roda, como fantasiei,
pois a coragem me faltou. Na escola Licinho era ligeiro nas respostas das questões
da professora, tanto como ágil como centro avante, quando eu era escalado para
o desprezado gol. Eram estas laias e gritas das pequeninas invejas caladas que
me atormentaram vidas a fio. Em compensação fui o primeiro a ver, apaixonado, a
calcinha da Bilinha na aula de dança, mas ela se enamorou tanto do Licinho a
ponto de leva-lo ao altar junto como meus ciúmes e desejos calados. Encurtando,
casei-me com a Meiza, por quem o Licinho, como contou a meu irmão, foi exaltado.
Não me dei por vencido, tivemos quatro filhos, dois cachorros e uma casa na
praia e, do outro lado, o Licinho teve um enfarte, ficou rico, mas gostava de
jogos arriscados. A Bilinha praticou aguerrida e insoluvelmente o botoque, mas enviuvou
agora muito despencada.
É a vida, resmungou o santo idiota da parede,
onde eu me retorcia, sobremaneiramente, no velório. Não sei se gostaria de
estar no caixão, partindo, ou se preferiria continuar carregando os conflitos
existenciais infantis? Pensei, ponho ou não meus inconscientes resquícios no
caixão para o Licinho levar ou divago mais? O santo foi dormir acabrunhado com
os homens insatisfeitos com seus destinos irracionais.
Ceflorence 05/06/18 email
cflorence.amabrasil@uol.com.br
Gostei muito!
ResponderExcluirGenial! Hilária!
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