DESAFEITAS EM ALQUIMIAS DE EROS E TANATOS
Caíra
eu em depressão profunda face às medidas tomadas de reclusão pela invasão dos
vírus, políticos, economistas e anões da sonolenta Branca de Neve. Mesmo se fez
assim o último outono em Antraçós das Benções, entre pintassilgos, melancolia,
inclusa nostalgias, sim, abrindo diariamente as cortinas dos invisíveis para nos
pormos a saudar nada menos do que o inelutável, micro infinitesimais, famigerados
diluídos no abstrato. Os movimentos eram lerdos, mas nada desmentia o refrão
medieval: “uma centopeia não faz verão”; com isto as andorinhas se sentiram
ultrajadas. Vesti máscara, chapéu verde oliva, empunhei jornal, com polêmica
manchete: fecha, abre ou o bicho pega, assumi as sandálias havaianas e fui
proibido de ir à praia ou conversar com o além. Não havia inclusive confronto
entre a metamorfose do absurdo e as pequenas soluções das premonições
confirmadas sobre a influência do paradoxo, tanto que as brisas contornavam as
meditações não permitindo às flores restantes encantarem os sorrisos. Entre o
delírio e a loucura não se conseguia introduzir mais do que um nada. O
desespero assumiu o tempo e o verbo. Seria a primeira secção de psicanálise com
o doutor Aracácio e não poderia deixar de estar com fome, ansioso, sentindo
odor de curiosidade e com premonição de que no final da tarde sentiria falta do
guarda-chuva, pois o sino da capela avisou que a missa das seis seria
professada em mandarim por Dom Keioshan pelo féretro de sete contaminados em
sequência e destino.
Notei,
caminhando para o consultório, que os jardins ainda eram muito dependentes por
serem da infância. Adentrei pela ótica minimalista sem grande entusiasmo. Saudações
ofegantes, discretas. O psiquiatra ordenou-me deitar no canapé e debulhar
livremente meus delírios existenciais. Livre pensamento. Obedeci. Existia uma
atmosfera de romantismo pueril entre as samambaias deprimidas e as crianças
aguardando a hora de recolher pela pandemia. À distância, provável até pela sutileza
delicada da neblina indefinida, a mera imaginação não parecia senão relutante silhueta
de metáfora a procura de sua poesia. Nos escombros do gerúndio, em que cirandava
naquele final de outono a imaginação, confirmou-se a expectativa antiga do vácuo
existencial entre a angústia e o conteúdo da melodia dos menestréis compondo as
sinfonias dos adventos prováveis, que propõem ser a existência que antecipa a
essência para criar o nada, segundo os existencialistas. Com isto descrito,
relacionei com o vírus começando a se impor a todos os gostos, gestos, paladares.
As ruas se esvaziaram ao se ouvirem os sons retumbantes dos invisíveis com os
dentes trincados mastigando o pavor. Pairava, sem preconceito algum, nítido sabor
hermafrodito da metamorfose transformando o acanhado silogismo em petulância
por ser a liberdade proveniente da angústia. Escutei o psiquiatra coçar o subjetivo
ou anotar algo sobre uma folha azul pelo aroma de lua nova dos raios de sol transcendendo
as venezianas, as fantasias e os bafos invisíveis dos vírus. Dei a devida distância
e retruquei que os dados levantados, segundo autoridade do assunto, pelo sequenciamento
da ilusão de ótica, poder-se-iam estabelecer a correlação, indiscutível, entre
a menopausa e a síndrome psicológica do afro-lagartixa. Amedrontei-me com o ruído
similar ao silêncio tentando ultrapassar a porta do fundo em função das meras
equações do segundo grau se recusarem a estabelecer correlações com as escalas
dodecafônicas e o assim o vírus poderia ser intransigente. Retornei à infância,
lacrimei envergonhado, e atribui o inexplicável ao complexo de Édipo. Não pude
atinar se o doutor chegou a entender exatamente o que eu transmitira, mas não
havia condições de repetir, pois a sensação de que tirara ele os sapatos, como
preferem estes profissionais para verificarem onde estariam os atos falhos ou
as censuras, fora indeterminada.
Enquanto
tal, poderia se observar claramente que os jornalistas e as madressilvas procuravam
suas razões e preconceitos entre uns papeis rasgados que o almoxarife deixara
antes de ir ao cemitério na quarta feira. O psicanalista virou a folha do bloco
para a página verde em que são anotados casos pessoais, endereço da namorada, receitas
culinárias, informações em sânscrito dos analisados mais esquizofrênicos,
melhores safras de vinho. Em seguida tossiu, discretamente, sugerindo, captei,
com argúcia, pela entonação da sua mensagem para não ser tão enfático nos
assentos graves e intempestivo, eu, nas vírgulas entre o sujeito, o predicado e
o objeto indireto. Não pude deixar de me reportar à borboleta Viléia,
mais afeiçoada ao verbo intransitivo, exatamente quando no confronto da
pandemia com as decisões de investimento nas bolsas, circunscreveu uma hipérbole
original resultando em graciosa parábola ecumênica do entretenimento entre
animais imaginários, figuras abstratas, mensagens de pêsames, remédios
hermafroditas, orações poderosas. Desta forma intransigente, as formulações
consistentes foram aproveitadas pelas crianças saindo repentinamente do Sétimo
Sermão de Isaias, Capítulo dos Abstratos e se puseram a saltar amarelinha antes
de levarem estas informações fundamentais como trabalho de casa sobre o
imprevisível. Lembrei-me, pelo em tendo sido minha infância, que as melhores jabuticabas
do outono são as colhidas entre as latitudes boreais e oitava de Beethoven. O
único aparte, até então do casmurro médico, foi de que ele preferia a quinta. Pela
plasticidade das circunstâncias, sabores das jabuticabas ao tempo, pavor dos
invasores, revoadas das aves e da angústia, lembrei Van Gogh retratando o belo
com o caos dos seus devaneios. Pousou em surdina em meu além vagando, um som
com perfume de fim de dia e tive uma sensação de suicídio ou vontade de
beliscar os croissants da Maria Antonieta. Os vírus cairiam, supus, com
entardecer e durante as discussões inúteis, repeti ao abismado doutor que imaginara
um enorme abstrato de esperança azul, antes de deixar onde estava em transe
sobre o canapé cruel, escolheria um solitário banco de jardim e verificaria se
seriam horas adequadas para um aperitivo ou a senhorita que passaria mascarada deveria
se dirigir em português ou em libras para pedir, desesperada, ao taxi que a levasse
para um horizonte sem limites ou a um refúgio desabitado. Descrevi com precisão
que uma imensidão cinza fosca envolvera Antraçós das Benções e fomos todos nos
diluindo em eu’s - (o psiquiatra corrigiu para egos) - assimétricos e
disformes, nos desfazendo dos nossos corpos, almas, por findos intransitáveis,
entrelaçando deformidades geométricas, muito irregulares e com seus ângulos indefinidos,
nos transformávamos em sabores de absurdo, cheiros de pavor, sensos de
incompetências, olhares de inacabados, acenos da morte. Desencarnei então em fá
sustenido e pesadelo sobre o canapé, por tempo indefinido, mas foi como apalpei
desesperado o nada e me pus a não existir em sendo.
Acredito
que o psicanalista e eu dormitamos neste intervalo de transe, tanto que fomos
surpreendidos pelo forte ruído do bloco de papel e peso abrutalhado das
anotações caindo no chão. Ele pigarreou sisudo em voz cavernosa que uma hora analítica
se fizera. Senti uma fervura de delírio borbulhando entre o passado e o futuro
sem o presente solucionar ou comparecer. Metrificamo-nos de tão longe que
nossos inconscientes se depauperaram em solidões. Não nos abstivemos, mesmo
assim, da sensação clara do vírus intentando imiscuir-se com suas garras
sádicas pelas nossas insondáveis demências apavoradas, regurgitando o mistério,
o insondável, a intimidade das próprias ignorâncias e por último os pavores que
transvestíamos.
Invadindo,
pelo inexplicável entranhado, nos demos um forte jamais, distantes o mais
possível, e até o infinito, se houvesse.
Ceflorence 11/04/20 e-mail
cflorence.amabrasil@uol.com.br
Será preciso um demorado habitar sem pressa, sem nenhuma pressa. Talvez assim o ser permita se desoculta. Por hora apenas o deleite me é possível nas palavras, agora apenas habitar os códigos, por hora só habitar.
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