IMPASSES E COMPÊNDIOS
Entre
significantes, voltei à realidade, àquela manhã fria ao sair para os devaneios,
antes até de começar a decidir os próximos passos. Analisei a singela postura
do bem-te-vi calmo e convicto de suas indispensáveis sonoridades, trinados limpos
e firmes. Imaginei o pássaro envolvido, ao que acreditei pela distância, entre
umas alegrias indefinidas e a um palmo e meio da esperança, se tanto. Gratifiquei-me
sobremaneira pela hipótese. Em seguida, como seria lógico, jamais deixaria de considerar
relevante, pelo peso nas circunstâncias, a extrema-unção oferecida à minha tia
Rezélia, nos seus derradeiros minutos, por Padre Mariáco ainda claudicando nos
seus movimentos, embora bem melhor, após a queda do púlpito na missa de Páscoa.
Partira titia conformada, segurando obstinadamente o terço, uma rosa branca e a
certidão de divórcio do canalha do marido falecido, para prevenir-se caso o
encontrasse no caminho do purgatório. Por fim, básico para minhas decisões, foi
a postura autoritária da insensatez que sobrevivera à viagem de trem ao
subúrbio de Caxias. Fora impiedosamente roubada ela de todas as suas arraigadas
incoerências psicológicas e desmarcou, assim, a consulta com o analista, que
poderia ter-lhe mitigado a paranoia. Paradoxos da insensatez.
Enfim,
foram estas as variáveis que permitiram mudança radical nos fatos, como pude
constatar. Titubeei, por notável, no início, marcando-me profundamente o
detalhe, pois a farmácia aberta despertou-me interesse antes de tomar o ônibus,
mais atrasado que habitualmente. Pensei espairecer acasos. Solidão é opressiva
e apavora, sempre estou fugindo de mim, por princípio, e como solução entro em
algum lugar, peço um café e fumo. Sublimações, quaisquer as cato, nas
circunstâncias servem e amparam. Da porta da farmácia entreabrindo-se, por onde
o sol fez questão de acompanhar-me, segurando uma brisa infantil pelas mãos, não
tive certeza se fora abençoado ao sentir os olhos lindos da moça chamando-me,
sutil e disfarçada, para um recanto sensual do infinito. Despojada, mordiscava
ela pelos lábios entremeados o bom-dia erótico do desejo. Apalpei, entre dúvida
e medo, um enorme naco de indefinição abandonado entre a angústia e o balcão
emoldurando fantasias e sonhos. Cabelos seus debulhavam-se sobre os ombros pretendendo
camuflar os seios delicados. Acariciei-os com cuidado, cerimonioso, à distância
exata, gesto sutil. Ela eufórica, deixou-se excitar perguntando o que mais desejaria.
Compreendi e para estimulá-la, sem transbordar impressão de indevidas ansiedades,
despi-a por três alternativas nas circunstâncias: imaginária, desejosa e platônica.
Pedi antitérmico. Erotismo pediria, mas...
Acontecia
o acaso de domingo ser. Passeavam crianças, cachorros, balões pelos jardins e meus
fictícios pelas formas torneadas, macias, da moça no caixa envolvida. Ainda em
tempo, beijei-a no ventre, nua, em êxtase, aguardando o seu orgasmo despertar novos
gemidos e carícias, enquanto corria eu entre as folhagens da alameda para a
porta do ônibus, que não poderia perder. Atenciosamente, gesticulou-me ela do
balcão para não largar o troco do mais barato antitérmico adquirido a pretexto
de conversas fúteis. Sentamo-nos no último banco. Ela despida cruzou as pernas,
ingênua e indiferente, sobre meu colo enquanto eu olhava para trás na esperança
do derradeiro adeus. Restava impassível a idiota da farmácia olhando o cachorro
urinar, merecidamente, em suas paredes frias. Chegamos ao ponto final aonde nos
esperavam o pipoqueiro lançando aos pássaros os piruás não convertidos em
pipocas e o chafariz carinhoso fotografado pelos enamorados sentados sob os
empuxos. Ao fundo, os sinos da capela vestiam domingo. A moça nua contornou as
águas da fonte, brincando, escondendo-se faceira, enquanto a insensatez tomava
a direita apontando algo indeterminado, que não veio ao caso.
Sendo
domingo tudo se esclareceu. O bem-te-vi, delicado, tomava as roupas da insensatez,
peça por peça, como fica bem nas cerimônias convencionais de encerramento e
cobria a menina suavemente. Minhas fantasias puíam-se esgarçadas à medida que a
alegria da nudez se vestia de solitude. O sino da capela repicou novas de titia
a caminho do além, mas encontrando, apaixonada, o marido canalha, eufórica,
rasgara a certidão de divórcio, permitindo-se orgasmos múltiplos, divinos. Da praça
do chafariz a farmácia atraiu-me, enquanto esperava o ônibus. A nova atendente,
mais bela, não resistiria meus encantos, com certeza. Desnudei-a sob a luz da
lua acarinhando a brisa. Domingo fora-se.
Ceflorence 19/03/16 email cflorence.amabrasil@uol.com.br
Gostei da frase : "Sublimações, quaisquer as cato, nas circunstâncias servem e amparam"...
ResponderExcluirSublimações... quem vive sem? Desconheço.
Muito obrigado pelo carinho e a constante visita.
ExcluirDemais, Carlos Eduardo!
ResponderExcluirJá pensou em publicar um livro? Eu vou no lançamento.
Cara Tania, está no prelo do pensamento, mais não com as crônicas, pois já estão circulando. a preguiça e a limitação estão sendo agredidas diariamente. Se vencer lhe dou notícias. Muito obrigado pelo carinho.
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