quinta-feira, 31 de março de 2016

IMPASSES E COMPÊNDIOS
            Entre significantes, voltei à realidade, àquela manhã fria ao sair para os devaneios, antes até de começar a decidir os próximos passos. Analisei a singela postura do bem-te-vi calmo e convicto de suas indispensáveis sonoridades, trinados limpos e firmes. Imaginei o pássaro envolvido, ao que acreditei pela distância, entre umas alegrias indefinidas e a um palmo e meio da esperança, se tanto. Gratifiquei-me sobremaneira pela hipótese. Em seguida, como seria lógico, jamais deixaria de considerar relevante, pelo peso nas circunstâncias, a extrema-unção oferecida à minha tia Rezélia, nos seus derradeiros minutos, por Padre Mariáco ainda claudicando nos seus movimentos, embora bem melhor, após a queda do púlpito na missa de Páscoa. Partira titia conformada, segurando obstinadamente o terço, uma rosa branca e a certidão de divórcio do canalha do marido falecido, para prevenir-se caso o encontrasse no caminho do purgatório. Por fim, básico para minhas decisões, foi a postura autoritária da insensatez que sobrevivera à viagem de trem ao subúrbio de Caxias. Fora impiedosamente roubada ela de todas as suas arraigadas incoerências psicológicas e desmarcou, assim, a consulta com o analista, que poderia ter-lhe mitigado a paranoia. Paradoxos da insensatez.
Enfim, foram estas as variáveis que permitiram mudança radical nos fatos, como pude constatar. Titubeei, por notável, no início, marcando-me profundamente o detalhe, pois a farmácia aberta despertou-me interesse antes de tomar o ônibus, mais atrasado que habitualmente. Pensei espairecer acasos. Solidão é opressiva e apavora, sempre estou fugindo de mim, por princípio, e como solução entro em algum lugar, peço um café e fumo. Sublimações, quaisquer as cato, nas circunstâncias servem e amparam. Da porta da farmácia entreabrindo-se, por onde o sol fez questão de acompanhar-me, segurando uma brisa infantil pelas mãos, não tive certeza se fora abençoado ao sentir os olhos lindos da moça chamando-me, sutil e disfarçada, para um recanto sensual do infinito. Despojada, mordiscava ela pelos lábios entremeados o bom-dia erótico do desejo. Apalpei, entre dúvida e medo, um enorme naco de indefinição abandonado entre a angústia e o balcão emoldurando fantasias e sonhos. Cabelos seus debulhavam-se sobre os ombros pretendendo camuflar os seios delicados. Acariciei-os com cuidado, cerimonioso, à distância exata, gesto sutil. Ela eufórica, deixou-se excitar perguntando o que mais desejaria. Compreendi e para estimulá-la, sem transbordar impressão de indevidas ansiedades, despi-a por três alternativas nas circunstâncias: imaginária, desejosa e platônica. Pedi antitérmico. Erotismo pediria, mas...
            Acontecia o acaso de domingo ser. Passeavam crianças, cachorros, balões pelos jardins e meus fictícios pelas formas torneadas, macias, da moça no caixa envolvida. Ainda em tempo, beijei-a no ventre, nua, em êxtase, aguardando o seu orgasmo despertar novos gemidos e carícias, enquanto corria eu entre as folhagens da alameda para a porta do ônibus, que não poderia perder. Atenciosamente, gesticulou-me ela do balcão para não largar o troco do mais barato antitérmico adquirido a pretexto de conversas fúteis. Sentamo-nos no último banco. Ela despida cruzou as pernas, ingênua e indiferente, sobre meu colo enquanto eu olhava para trás na esperança do derradeiro adeus. Restava impassível a idiota da farmácia olhando o cachorro urinar, merecidamente, em suas paredes frias. Chegamos ao ponto final aonde nos esperavam o pipoqueiro lançando aos pássaros os piruás não convertidos em pipocas e o chafariz carinhoso fotografado pelos enamorados sentados sob os empuxos. Ao fundo, os sinos da capela vestiam domingo. A moça nua contornou as águas da fonte, brincando, escondendo-se faceira, enquanto a insensatez tomava a direita apontando algo indeterminado, que não veio ao caso.
            Sendo domingo tudo se esclareceu. O bem-te-vi, delicado, tomava as roupas da insensatez, peça por peça, como fica bem nas cerimônias convencionais de encerramento e cobria a menina suavemente. Minhas fantasias puíam-se esgarçadas à medida que a alegria da nudez se vestia de solitude. O sino da capela repicou novas de titia a caminho do além, mas encontrando, apaixonada, o marido canalha, eufórica, rasgara a certidão de divórcio, permitindo-se orgasmos múltiplos, divinos. Da praça do chafariz a farmácia atraiu-me, enquanto esperava o ônibus. A nova atendente, mais bela, não resistiria meus encantos, com certeza. Desnudei-a sob a luz da lua acarinhando a brisa. Domingo fora-se.
Ceflorence  19/03/16         email     cflorence.amabrasil@uol.com.br

4 comentários:

  1. Gostei da frase : "Sublimações, quaisquer as cato, nas circunstâncias servem e amparam"...

    Sublimações... quem vive sem? Desconheço.

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  2. Demais, Carlos Eduardo!
    Já pensou em publicar um livro? Eu vou no lançamento.

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    1. Cara Tania, está no prelo do pensamento, mais não com as crônicas, pois já estão circulando. a preguiça e a limitação estão sendo agredidas diariamente. Se vencer lhe dou notícias. Muito obrigado pelo carinho.

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