ORQUÍDEAS
Não
sei se veio do inconsciente, mais enfurnado, ou do deserto, árido, a mim alheio,
mas chegou certa e pontual a única corrosão que esgarça a alma para rever-se, o
tempo. Os fatos foram devolvidos um a um, como migalhas desleixadas esquecidas aos
pássaros, que imitam as esperanças ao voarem para se perder em inexplicáveis. No
entremeio, as saudades tresandavam borboletas fugidias ou, melhor, fantasias
brincando de tristeza. Retornei assim ao nada, passo a passo, com a mesma
tranquilidade e segurança com que a hipocrisia pare o remorso. Suponho: tais pipas
vistosas, vaidosas, soerguendo o vento para exibirem-se mais do alto. Só a
solidão sabe garimpar estes indefinidos, devaneios estilhaçados, com certa destreza
carente, para separar, na bateia da vida, a angústia dilacerada dos sonhos, que
não nasceram, daqueles que gostariam de ser sonhados. Na falta de talvez, fui-me
esfarpando envolto em silêncio, antes de propor vomitar os anseios largados
sobre a existência. O tempo remoeu-me sem perdão.
Distrai-me
com o azul que se despedia para brincar de noite. Sobre a janela do alpendre
acompanhei, obcecado, com ternura, uma réstia de formigas. Acreditei no
convencional: as formigas nascem, vivem e, dizem, seguem impávidas,
indiferentes até a morte, inconscientes dos seus destinos pobres e das sandices
de não conseguirem sequer sofrer. Pior, é textualizado, não sentem faltas.
Alienadas? Minha ternura galopa suave para a inveja seguindo a fila indiana até
o ponto em que elas se recolhiam esprimidas entre um batente podre da janela e
o reboque esgarçado. Socorri-me de seus destinos, pobres de formigas miúdas,
alienadas, atraídas fervorosas aos batentes podres, e transmudei o paralelo da
fileira para o meu imaginário visionário, talvez idiota.
Se conquistasse
abnegado escarafunchar pelos meandros da minha angústia, escalavrando
enfileirado o que teria nas entranhas obsessivas e confusas das alucinações, como
se fosse formiga despretensiosa, os fantasmas inconscientes bailariam sob minha
regência e os medos fugiriam apavorados pelos escaninhos da liberdade. A
consciência é cruel e não perdoa a credulidade: uma paranoia petulante
mordiscou-me os devaneios, com a impunidade do concreto. Ao tentar assegurar-me
que não enlouquecera, procurava distinguir se o som que me angustiava seria o
horizonte, atraindo-me para cobiçar a tranquilidade com que ele abraçava o ocaso
ou se os cachorros do vizinho estariam amofinados pelo gato rajado esgueirando-se
soberbo pelos telhados toscos do destino. Sem solução, optei confundir-me em
uns emaranhados pessoais, ansiosos e malcriados. Não sei por que me debruço sobre estes idos, sidos,
vividos, intransigentes sempre, hipócritas às vezes? Esta a razão de não acalantar
mais o azul de antigamente a que tive direito, sem ter carência. Mas quando
careci, careceu. Se houvesse solução mastigaria alegria, desprezaria melancolia
e não acariciaria mais a expectativa. Um beija-flor se fez sorriso e pousou
sobre a fortuna. Longe das minhas esperanças.
Os
dias se foram com a indiferença com que as saudades castigam os fins. Conformar-me-ia?
O passado convidou-me para rever as tristezas, a sós. Abrimos meia garrafa de
vinho, duas melancolias e um acerto de contas. Trouxe consigo, não esqueço e
nem poderia, a última lágrima miúda, escondida, antes de não cair, tremulando
entre a ansiedade e a esperança que Lédia carregaria para o jamais. Assim, penduramos
um por que no incerto. Não éramos mais, desventurados sucumbimos em fomos.
Acabrunhado
restei, parvo, sem definir se a orquídea, sobre a mesa, viera sozinha, se Lédia
trouxera ou eu a imaginara. Mas o desespero é que a orquídea se impregnou de
passado para me assombrar no presente.
Ceflorence 20/02/16 email
cfloence.amabrasil@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário