DOS DISTRITÚRBIOS DE ATAMBÓ
Atambó dos Encantos foi o imprevisto da maré montante que
derramou carinhosa às margens brancas das areias, borrifadas do sensual, para
que os acontecidos não se arrependessem dos casos e dos acasos que se sucederam
naqueles esquecidos. Capilinho da Penga expedia afeto, sem pressa e a prazo,
por qualquer desacato ou sorriso de enfeitiçada pelos seus dengues e madraceados,
sem remorsos ou soberbas. Quem campeasse em Atambó o encontraria, no mais das
vezes, perto do Atacado do Repasto da Ema ou na Rua da Miúda, estreita, torta,
suja e sem vaza ou no preparo de esconder-se na boca do Morro da Fumaça. Tudo junto
ao mercado velho aonde a vida se fazia e a morte visitava amiúde nas vinganças
prometidas e aprazadas.
Lá, nas horas vadias de Capelinho, em que não jogava capoeira
no Remanso dos Esfolados ou não se ocupava, profissional, nas maranhas do
baralho na Praça do Bem-te-Vi, as manobras não davam sossego. Tinha dele sempre
que sobrar qualquer para desafinar o Moenga, mau caráter do cabo da fardada,
que não lhe podia escutar o nome, sem chegar, silenciado de calhorda, para morder
um tanto, por conta do que ele nem fizera. Fugia Capelinho, sempre, dos mandatos
do juizado para despistar algum atazano de emprenhada para o sustento do bem
nascido, que empolgava de ter a sua cara, e era de direito dela demandar, por
assim ser cumprido. E nem por isto o sol deixava de nascer. Dos sacramentos, se
respeita pelo precavido e Capelinho tinha por bom juízo não roer desaforo, não
ouvir lengalenga e ficar longe de soldado, gravidez e cura.
Na Congada de Reis, entestou Capelinho de galgar
a Ladeira dos Afogados e cumprir carência de benção com Mãezinha do Acaré.
Mãezinha, dadivosa, estava sempre de bem mandada dos aléns e carecida de Oxum-Abalô
para as orações de transe no terreiro dela no Abatopungá do Alto. À noite, subindo,
Capelinho assobiava ostensivo de bem servido, só em alegria, vendo a lua
brincar de ladra, dissimulando as estrelas do lado do mangue, que o mar beijava
manso. Os cachorros uivavam pedindo a Jaci crescente que não se escondesse,
pois os deuses já desceriam prestimosos tão logo os atabaques castigados nos
coros curtidos, clamando à Mãezinha rogar às almas que, em graça, encarnassem
os puros para os confins purgarem. “Que Iansã, companheira de Xangô, e que
destina os ventos e as tempestades, nos acaricie em tempo” – reconfortou-se
Capelinho, na solidão do destino, em busca do aconchego farto de Mãezinha,
morro acima, ensimesmado de fé, a-tendo.
O terreiro foi se forrando de humildade e
crença. O pescoço da lua esticou a curiosidade para o olhar fartar. Os atabaques
e os canzás invadiam pelas entranhas os anseios dos carentes enquanto as filhas
e os filhos de Iansã despiam angústias para o reconforto dos passes. Os
espíritos rolavam doces pelos telhados, pelas paredes e pelos incertos, no só
aguardar Mãezinha ordenar as escolhas dos pares. Tudo inebriava: o batuque, a
magia, o calor, o sensual, o excêntrico. Mãezinha deixou Ogum deflorá-la em
transe para esplendor do divino e regozijo dos vivos clamando incubação dos
mortos. O irracional pungente expurga o racional inútil. O céuterra une-se como
antes da criação fosse,... e, em sendo, era.
Capilinho
rodopia nos magnetismos do inconsciente invadido, devaneando atração pela alma de
Livinha encarnada na beleza sensual da desconhecida. As solidões, ambas, atiram-se
às esperanças. Mãezinha acarinha, na direita, no tom grave de Abalô, Livinha do
Pontal, cafetina de fina flor, que enfeita a própria casa, conhecida na Rua da
Alfandega, com o capricho da escolha das rosas moças que se desmancham em
êxtases aos carentes do afeto fiduciário barganhado. Do outro lado, Mãezinha aconchega,
no regaço quente, Capilinho enfeitiçado do olhar de Livinha. O mundo azulou só
do porvir se sendo e Mãezinha garante que as almas dos dois retornaram, ali,
depois de muitos destinos e desafetos de vidas passadas, sofridas, sem rumo, para o sempre se enfeitiçarem.
Pelos
dois, amor, três dias, mal dera para aquecer: o sol dobrou noite. No quarto dia,
Livinha, agarrou Capilinho no detalhe do sofisticado e enlojou-o na soberba. Enfurnou,
contínuo, em um dos salões da casa das donzelas, roleta viciada e bacará
esperto para prosperarem nas maranhas mãos do capoeira. O casal, pelo fomento do
social financista, passou a frequentar, enfatuado, missa de domingo, na Matriz
e, pela fé e carinho, nas sextas, o terreiro de candomblé, no Acaré, de
Mãezinha. Oguniê.
Ceflorence 27/12/15 email
cflorence.amabrasil@uol.com.br
Obrigada Sr Florence por nos brindar com mais um belo texto.
ResponderExcluirParabéns e sucesso ao novo espaço! Abraços.
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