APOFÂNTICO
Ao
inapropriado capricho, há alguns dias, como saboreiam deuses, prometem camelôs e
os menestréis divulgam, entremeou-se em meus descuidos e destino algo
inusitado. Repito pela originalidade, tal sendo, enveredou incluso no contexto uma
cisma esquizofrênica, irreverente, lado inverso à transferência analítica que impus
à minha psicanalista lacaniana, tangendo certo resquício petulante de dúvida na
própria raiz e, por mais estranho ainda, azul. A palavra impúbere surgiu
consciente de forma espontânea e inusitada no momento, mas sem saber a
procedência, racionalizei ao desconsiderá-la na circunstância. Sei que não é
fácil apreender de improviso este introito, mas peço um gesto paciente, pois se
justificará e envolve boa circularidade. No começo nem eu mesmo interpretei os
fatos corretamente como mereceriam e merecerão.
Deu-se o
ocorrido, retratado aqui em memória, na forma concreta de um dicionário ostensivo,
incluso irônico, quiçá sarcástico, ao instigar-me indelicado, enfatizo a agressão
para marcar a forte sensação de injustiça em minha autonomia e liberdade
existencial. Apeteceu-lhe, visto que se deu inconteste, reafirmo só agora,
embora ainda inconformado espargir em meu sossego andarilho ao acaso pela circunvizinhança
habitual que transito não menos do que o vocábulo apofântico, como se o gracejo
fosse um direito intempestivo seu, mas com claros objetivos insultantes do
glossário. Saliento então, se fez este absurdo em minha terra natal, perambulando
adjacências.
Desde o último
ano notava já sintomas, quando a crise política, social, econômica e sanitária deflagou,
que além de todas estas atividades levantadas também se indispuseram às rotinas
tradicionais semânticas para confundirem os provérbios e as dialéticas. Portanto
os objetos diretos não se encontravam mais harmônicos nas cadências em que os ordenei,
os verbos transitivos perderam o sabor afrodisíaco e a Quinta de Beethoven foi minimizada,
registros fundamentais estes para o entendimento. Não bastando, e no arremate, os
sintomas das euforias coletivas em apoio aos protestos sociais, de todos os
matizes, se tornaram mais resilientes, inexplicavelmente. Só poderiam ser
premonições do adjetivo apofântico, impertinente, marchando contumaz sobre o
futuro e que o dicionário nada mais fez do que impor e confirmar.
Agravou-se
sobremaneira o remanescente, assim que os adjuntos adverbiais foram
miscigenados com os atributos predicativos, tanto que a autonomia dos delírios
subjetivos passou a infernizar-me o cotidiano. Meu confessor, Irmão Raumi
Dorengo, Xamã Oriungutá, retornou ao sanatório preferido, abandonou-me na
passeata da Paulista contra ou a favor da teoria da relatividade, talvez da
evolução darwiniana, se não estiver enganado. Não bastando estes traumas
vitais, irrompeu o apofântico filhote do dicionário com a mesma magnitude
arrogante que os gregos o criaram para definir o indefinível. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo,
Amém. Saravá. Apresentou-o in corpus.
E assim apofântico
se alvorou permissível ao reflexo da imensidão da incongruência ou à síntese de
tudo, pois pura e simplesmente expressa, simultaneamente, o falso e ou o verdadeiro,
quando atribui juízo de um predicado a um sujeito. Repito, imagine, podendo ser
falso ou verdadeiro e não estar envolvido em algum inquérito ambientalista,
formação de seita nova com fins arrecadatórios ou até conjugação e escambo de
informações pedófilas! Passou Dr. Arsério Ficus, aposentado delegado de polícia
e relacionei as matérias aos milicianos. Não confortou, mas passei a aceitar o reforço
do paradoxo já sobre o absurdo mesmo que ouça o canto ameno do coleirinha na
madrugada. A partir de então pressenti que os significantes não mais refletiriam
os significados, embora as meninas se deleitassem saltando amarelinha em frente
as calçadas onde cruzei carregando convicto estas anotações, que recolhi para
não tomarem sereno, a tiracolo e emprestá-las ao Vigário Liotéo Gobo.
Enquanto sim,
se fazendo o entardecer, a brisa se distraia em melodias suaves dedilhando as
palmeiras cirandando poesias e encantos. Um tom rosa encaminhou mais cedo para
ocupar sua participação no poente informando que gostaria de atender o chamado
do infinito antes de escurecer. Não intercedi e pensei tal qual seria acoplar o
apofântico às imagens que nos definiam como ser único do cenário nos devorando
entusiasmado do entardecer, entre o coleirinha, Paulista, gregos, adjunto
adverbial, o dicionário, eu, e os demais a regermos o paradoxo e a esperança.
Um sabor doce de demência veio nos acariciar em tons pastéis como Picasso usava
nos detalhes sutis.
Havia espaço naquele
momento para supor calmamente uma defloração tranquila e mágica. Dediquei-me
sem remorso à fantasia aproveitando a vista da brisa percorrer suas intenções, a
maré montante aconchegar carinhosa à janela da moça desconhecida, sem sequer me
conceder seu esgarço. Para não deprimir lembrei que se fazia sábado. O papagaio
do menino com os pés descalços prendeu-se na copa do pinheiro mais alto e ele o
chamava de volta sussurrando afetuoso filho da puta no ouvido da linha que os
deixavam imantados e atrelados juntos ao universo, ao sonho, ao infinito. O
cosmos é interessante, indivisível, demente ou calhorda? perguntei ao calado
atributo apofântico indiferente e mudo, pois o todo me pertencia e eu era o
todo.
Não havia mais
razão para melindres, angústias ou remorsos, apesar que tudo, pelo menos enquanto
a facticidade comandava, se submetesse à lei da gravidade, ao império de Ayres
invadindo o silêncio da menopausa de Vênus ou os colibris continuassem
enfeitando a sutileza da simbiose com as flores deleitando a primavera.
Confesso que pus em dúvida se retornaria ao assunto face a intensa revolta
pessoal, ou adotaria um pleonasmo abandonado na orla da praia, a pedir donativos
ou preces para sobreviver, mas jamais permitiria deixar o apofântico adjetivo
morrer de inanição por desconsideração do dicionário.
O mundo dá
voltas, conforme umas das frases mais originais proferidas raramente, mas conferi
relutante que a primeira esquina à direita não me levaria além do nada. Tal se
deu e mudei de posição, embora não tivesse mesmo a menor necessidade de por ali
rumar, pois, repetindo, era sábado, as crianças tiveram aula de catecismo antes
de se masturbarem, para poderem usar seus aplicativos depois e antes de serem
obrigadas a tomar banho. Do desconhecido uma flauta se fazia brincar de
dolência com as cores preferidas, as maritacas transportavam seus chilros
destoantes para o alto da Serra do Merengo antes de deixá-los escorrer habilmente
pelo vale que acomodava o Ribeiro da Guincha. Minha terra, saudade.
Perguntei ao
dicionário se esta seria uma situação apofântica, mas ele foi lacônico,
assobiou um Bolero de Havel, se imiscuiu entre os carunchos das prateleiras
conversando amenidades, se metamorfoseou em silogismo ou proselitismo, não
identificável de antemão no ensejo, mas notei, mesmo como as andorinhas
preferem antes de beliscarem sutis os mosquitos imperceptíveis nos silêncios
azuis ao cair da tarde, que a resposta não seria sincera. Cena nostálgica da
hora da Ave Maria das minhas recordações de infância se refizeram ao não segurar,
com dolência e nostalgia, duas lágrimas distraídas sem contrição.
Mudei a página
para verificar se o entorno estava afinado em lá ou as crianças estariam
somente se fazendo de alegres. O ser é muito interessante, somos nós que o
fazemos, padecemos ou o sofremos. Meu confessor, Irmão Dorengo, e Platão não se
afinaram nesta estrofe até utilizarem o materialismo histórico, o que não mudou
nada na vida, puta merda, segundo a vidente Inhatã do Sumidourinho dos Alagados,
a qual sigo e prescrevo. Fiquei em dúvida de como chegaram simultaneamente
estes pensamentos perfeitamente lógicos e sincronizados ao meu raciocínio? Em
resposta, e por isto mesmo, com muita segurança, tentei achar para o apofântico
desiludido, uma rima medieval, gregoriana, mas todas haviam sido gastas nas promoções
de marcas de sabão-em-pó.
A lassidão foi
mais peremptória, nem titubeei, preferi o bandolim que estava empoeirado sobre
o esquecimento há bastante tempo. E ao desestimulo
da rima com sabão-em-pó, executei Seresta para Duas Luas. Transgredi em fá em
consequência, assunto prioritário para a meditação Ishua, pois é como dizem os
cientistas; as moscas zunem nesta tonalidade. Por desespero, não me definiram se
em sustenido ou bemol se dão os zunidos de todos os mosquitos da terra? O
silêncio, no transcorrer andante, me permitiu enxergar enebriado uma melodia desconhecida
descendo a ladeira com os telhados espionando a solidão como se fossem soluções
para resguardo de homofobia, motivo para missa de sétimo dia ou carência de descarrego.
Este o ambiente alegre circundante, em que me encontrava, minha terra, ali em Jaboatão
do Candeio.
Cinilinha, meu
sonho, saiu do cabelereiro, fingiu que não me viu, sabia que eu a desejava e
seguiu por umas alamedas arborizadas, carregando minhas fantasias, marcando as
calçadas com meus desejos, procurando algo melhor para ela se entreter com a
tarde desfazendo no poente. Estas frases soltas, penso eu, reforçam minha
atenção e saudades, mas só em conjunto, para coisas interligadas como o
presente do subjuntivo, menopausa, minha pretensão em ser feliz e ainda o
romance de Machado de Assis na cabeceira esperando ser lido há muito. Fatos
fundamentais na minha vida naquele momento. Com este pensamento apofântico,
verdadeiro ou falso como se expressa, continuei remanchando pelas ruelas vazias
antes que o sol se escondesse.
Atentei. Ah! Lembrei
agora, fundamental incluir no contexto sido, o cachorro do Eráldio da Zefrinha,
que selecionava amiúde poste eloquente, preferido, seguindo seu faro apurado,
enquanto uma nuvem passante observava a alegria jovem enfeitar a Praça da
Matriz, carreando as normalistas sorridentes. Provavelmente para se enfeitarem
de missangas e fantasias para o baile do sábado que se faria vir. Baile no
mesmo sábado, no mesmo clube, mesmo namorado, mesmo sonho, mesmo mesmo. Sem nenhuma
petulância, as aleluias ainda definiriam se alvoroçariam suas revoadas antes ou
depois da chuva. Aleluia tem este temperamento mágico; surge do inexistente,
prolifera alegre pelo inusitado, brinca de bailado com pássaros que surgem do
amém e some sem dizer adeus.
Um sol já sem
sobrenome, pré-conceitos ou insistência titubeou escolher olhar alegre entre a
reverência do Monsenhor Agipino Colato, seguindo ao mosteiro para ensaiar as
gregorianas da missa do galo, e o humilde chafariz alterando enfeitar-se com as
tonalidades do ocaso desfazendo manso, sem pressa, como determinava o Senhor. Consultei,
sem resposta o mistério do anoitecer, como prescrevia Nhonhato Cura, muladeiro
de profissão e cisma, que atentou ensinar-me a benzer berne e mal olhado, no
tempo que eu não sabia o que era dicionário, muito menos apofântico e nem
desconfiava que era feliz não só pelo pôr no sol. A reposta do mistério veio em
sonho na madrugada, amolengado de cisuras, quebrantadas na indefinição e
incógnitas mal terminadas, assim como cascavel no cio apreciando a presa tal
qual o bote freudiano atazanando o inconsciente ou o Édipo no divã.
Não houve espaço
para saborear os sorrisos de duas meninas procurando destinos ou sonhos, pois o
apofântico, do dicionário, empertigado começou a demonstrar que gostaria de se
entreter pelas calçadas, corridas, verdes, normalistas, brisas, deleitar jardim,
mesmo como preferem as crianças alegres. Comecei a definir claramente a
situação; as meninas atentei de forma clara, apofântica, tanto que não sabia se
eram reais ou as imaginei e, assim, aproveitei para arguir se as pombas
estariam satisfeitas com os restolhos das merendas que as crianças desfaziam
pelo trajeto. De mãos dadas as jovens foram sendo sumidas pelo resto de silêncio
que ainda consegui consultar, pois as carreava para suas esperanças semeadas
para o baile, maquiagem, namorados, para a noite. Minha terra.
A revoada das
aleluias trouxe reminiscências. As sombras esconderam o rubro do infinito para
aninhar o sono do Senhor. Se fez hora de levar a saudade e o apofântico para o
sossego. Confirmei, sábado sim, era, mas não dispôs se eu era antes, seria
agora ou serei depois. Meu juízo escolheu trabalhar assim mesmo em escala
dodecafônica. Mesmo como o caro delírio suave expressa, sempre sendo, que nunca
me confessou a realidade ou o falso para não desiludir o ser do meu entorno e fingir
que sou normal, acreditei que bastava. Algo morno e inconsciente nos levou ao
inexplicável pelas mãos da dúvida. Nos conformamos.
Ceflorence 20/06/21 email
carlos.florence@amabrasil.agr.br