quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

PROVÉRBIOS E TESTEMUNHOS.

-Pois falo, pois! Digo até! Como se fosse sete palmos de corisco e praga dos infinitos, risco arriscado fundo, vindo do poente catingoso por muito desmamado, grosso, como cascavel no cio desconjura a bicha, do lado canhoto que o lobisomem desacanhava e por donde ele dissimula as pestes, a saudade, a porventura e outros catingados seus. Foi assim ali, lá, o acontecido, Doutor. Careço do atento de sua senhoria, doutor, por verdade e respeito, para não dizer que minto, pois o contado se deu nas horas dos desvalidos, a mando de um traquina qualquer, das putas filho, com certeza se diga. Arribou o acoitado no propositado de cumprir, por despeito, mandado de quem parira promessa de querer ver Farcato do Roncador amortado, morrido sem unção e só na certeza do tocaiado ficar defunto de bala e faca, ensanguentando. Fustigava tiro escapado de cartucheira, um arribando outro em riba, apontado do matador profissional na tocaia; tocaia sabida de não ter saída para Farcato, até mesmo ele, dito correto, ser de garra atazanado jagunço crispado, pois era.  
Acantonado no pé do Morro do Sumidouro, baixão da Capoeira dos Confins, ali onde o senhor doutor conhece e caça, me ouça por atenção, sem ver rastilho de escapar do tinhoso atirando, ruminou o entocado, Forcato, no sentido de esperar o sol se entestar em preguiça. E nem acendeu o pito, deu ele conta de ser, para o gabiroba atirador não entortar na desconfiança de medo ou covardia. Ah! Atente por favor. De um lado subia pedra, de morro um tanto acima, que nem deus unhava, sim, de tal digo, urubu tinha medo de despencar de lá. Do outro lado, mata de afogar corisco, ouriço andar de costa para não se enrascar nas urtigas, jacu criado não deitava conforto de ciscar. Pra banda do grotão não adiantava atiçar de embicar no rumo, pois pelos riscados do estouro da pólvora se esfumaçando, se via o intendo do pestilento, emboscado ali no coito, esperando o tempo ranger na sina de dividir Forcato em rasgados pedaços e as mais torpezas. Deus desandava de provérbio para não dar serventia à sorte, sem saber de antemão o lado de beijar o trilho reto. Quando deus não toma partido, vosmecê, escolado, sabe bem, a coisa é carrancuda, feia, carrasca.
Nem digo doutor, por dessaber, razão de voltar estas desardiduras, agora, que o meu tempo de velho carcomeu muito, desabusado de insistir viver sem saúde. Fiquei entravado e a coruja já estirou a arapuca de cangar gambá para me desparir da vida. Mas vi correto como a coisa se deu e provo pra terminar o testemunho. Farcato, quando se viu no oco do perdido, arrepiou de coisa ruim, assumiu de lobisomem, fedeu feito jaratataca de restingão, urinou na boca da garrucha, despiu das, de todo, roupas desnecessárias na fuzarca e fuzilou no sentido das demências. No quiproquó o vento dobrou mudança de rumo, a coivara deitou no varjão, a pedreira disse amém e o tiro calou. Aquilo virou um tormento de despropósitos desfigurados; o resto se deu. 
            Pra descerrar, Farcato eriçou de peixeira atiçada, garrucha baladeira chispando. Peludo de pelado saltou na quiçaça do acoitado mascando seu destino de fim. Deus desolhou o resto e eu nem vi se sumiu ou se se quedou Farcato. Pode crer doutor; se fez o que vi, doutor. O sol dormiu cedo, pois o medo me desmediu destampado. Foi!
Ceflorence      09/12/16   email    cflorene.amabrasil@uol.com.br

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

FLORES, COLIBRIS E FANTASIAS.
     Entre o infinito, refúgio dos delírios e repouso dos inexplicáveis, de onde a sina se arroja para enredar-se com a probabilidade e cada qual dos duendes, das amarguras ou dos loucos possa colher como for capaz e mais a contento, e o jardim de Abcarja, vidente das melancolias e das cores, exatamente onde as fantasias e os sonhos brotam, um beija-flor despojado de desejos depositou, ali, nesta confluência, ao menos duas de suas últimas lágrimas recolhidas entre as remanescentes das rimas e das poesias. A solidão abandonara as lágrimas colhidas pelo colibri antes de se maturar em angústia e esgarçar as incoerências dos destinos, das alegrias almejadas, das tristezas inevitáveis e dos amores ansiados. É assim que se fabricam as quimeras e este era o jardim do cuidadoso e apaixonado Abcarja, arguto profeta. Estendiam-se os canteiros como deus dispunha: o canteiro florido, colorido, das euforias entremeadas de graças ruivas e sutilezas singelas, o dos desejos, sombreados pelas felicidades em botões.  Na outra extremidade se confinavam, par a par, muito petulantes e agressivos, os canteiros da inveja acre, do ciúme sádico, do amor sensível e o da vaidade velhaca. O vento visitava o jardim de Abcarja, para se espalhar em seguida, ardiloso, pelo mundo e contar aos ansiosos as delícias das suas alegrias, cores, magias, mas não esquecendo, jamais, as agruras.
     Era pelo andarilhado livre, sorrisos desperdiçados à conta das alegrias, no jardim, entremeando canteiros e delírios, que os carentes das esperanças se deixavam a brincar soltos e livres, sentindo os perfumes dos sonhos recobertos de fantasias, provando os coloridos dos desejos apegados aos seus medos e fugindo eles das alamedas das tristezas; alguns intendendo pisoteá-las. Mas os porvires dos canteiros castigados se exibiam mais floridos depois de maltratados e judiados, como só os aléns sabem fazê-lo. E por assim sendo, tal se dava com os canteiros sortidos de esperanças ameaçadas de frustrações ou das amarguras contestadas; Abcarja colhia suas plantas para tecer os ornados dos buquês premonitórios, procurados pelos visitantes, vindos com as romarias distantes, intermináveis e chegando sempre a procura dos imprevistos, dos aléns e dos confins. Com as sacolas repletas das suas seguranças afetivas ou ilusões proscritas, retornavam aos seus aconchegos os peregrinos dos pressentimentos, carregados e satisfeitos graças aos buquês de verdades existenciais articulados caprichosamente por Abcarja.
     Ao anoitar, em seus amparados sossegos, os visitantes do jardim de Abcarja, escondidos pelas vigílias dos seus sonhos, espionam seus floridos destinos e os proíbem de murchar. Lembram os fiéis de Abcarja, que enquanto a madrugada se faz, o colibri se disfarça de magia azul e se alucina pelas imaginações do infinito.
     No retorno dos sonhos, lampejados de eternidade, sempre vem o beija-flor carregado com suas lágrimas, para nutrir os poetas e menestréis com as rimas e os delírios com que tecem seus versos e canções.
Ceflorence       03/12/16           email  cflrence.amabrasil@uol.com.br

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

SETE ANGÚSTIAS E DUAS CATÁSTROFES
Pelo que restou como sendo intermitentes lembranças de Antério Álaco Nunhóz, tudo se pautou após cruzar ele o extenso corredor chamuscado de azul, agredido nas bordas pelo tempo, permitindo-lhe, devaneado, acompanhar as andorinhas sobrevoarem sob os bolores do teto. Eram pelas indefinições conjugadas, aleatórias, dos bailados voos das andorinhas entrecruzando os manchados forros, que se desenhavam as claras previsões do seu próprio futuro, desvelado por Antério para si e para os companheiros do sanatório. Enquanto decifrava os volteios, sob os borrões, Antério sorria e saudava os vagados espíritos dos falecidos internos do hospício apegados ao local.  Nada havia no ambiente sem ser meticulosamente envolvido em signos, em símbolos, em hipóteses, que fugisse à acurada percepção de Antério. Quatro enfermeiros agitavam-se pelo corredor com suas bandejas de remédios e seringas a cata de compromissos, assistências ou fugidias escapadas às preguiças.    
Antério, camuflado, arrastando-se lento pela sombra para despistar o demônio, envolto em seu cobertor de lã crua, se inteirava das probabilidades futuras ao acompanhar, pelo corredor, os profissionais da enfermagem, cirandando entre os doentes nus, descalços, fitando o nada, ouvindo o infinito, se masturbando. Por serem os atendentes, um negro, dentes perfeitos, um obeso de meia idade, uma enfermeira nissei, loira, de óculos escuros, um homossexual extrovertido, envolvidos todos em socorrer os estáveis com afagos e os agitados com camisas de força, concluiu Antério, corretamente, não haver contradição das andorinhas revoarem do vitral central em direção à capela, respeitando sempre os signos do porvir, mas contra a luz. Tudo era tão claro na evolução das aves aproveitando a queda da brisa e a ascensão da constelação de Aires, grafada no imaginário de Antério. A reflexão das demências ou sanidades sobre os atores era literal: almas, andorinhas, enfermeiros, doentes, futuro, desejos, ansiedades, bolores, mudez refletiam destinos. Os aparentes paradoxos eram um livro aberto, uma homenagem ao óbvio, a ser lido. Tempo, silêncio, contemplação, fé; na capela Antério sussurrou a Caltégio Recil, que fugisse da fila de comunhão da esquerda, pois as hóstias ali oferecidas pelo sacristão, um estroina, e não pelo monsenhor, foram desconsagradas arbitrariamente, sob a alegação de que o cálice delas habitara o ofertório do beligerante São Jorge, ativista de candomblés.
Confirmara-se a exatidão dos fatos, pois o próprio Antério consultou seu pé esquerdo profundamente afetado emocionalmente e só aguardando as determinações do imponderável, que o mordiscava insistente sob a bainha do cobertor. Hértese Ábias, companheiro de quarto, confidenciou-lhe, de soslaio, que se a lagartixa eufórica o provocasse novamente seria deixada em jejum, lambuzada em angústia com ejaculação e a hipnotizaria para exibi-la às visitas dos parentes dos dementes. Antério considerou que a sanidade de Hértese estaria em fase bipolar. Habilidoso, com carinho, despregou Artério um triste reflexo da gota chuvada pendente sobre o vitral e beijou o mimo antes de entregá-lo a Hértese. Dissuadiu-o assim de gestos agressivos, pois haveria sempre o conflito existencial: morreria o dia em solfejo ou o pesadelo galoparia sobre os delírios? Signos das hipóteses ao cair da noite, solidão e destino.
Ceflorence     28/11/16    email          florence,amabrasil@uol.com.br